domingo, 5 de novembro de 2017

PATHOS


Não deixo de ler José Pacheco Pereira com muito interesse e prazer. Poderá ter-me provocado certa vertigem a rapidez com que mudou de clube ideológico ao longo dos anos, mas conformei-me; ou pode ser que me sinta preconceituosamente desconfortável devido à ligação que mantém com um partido de onde nada de bom veio ao país, e em que, de resto, é controverso e mal aceite. Contudo, descobri, há muito, que, esteja ou não de acordo com ele (e estou bastas vezes, e bastas outras não estou), o seu ponto de vista é sempre um ponto de vista - não uma "opinião", não mera doxa, nunca o reflexo do que se diz, nunca uma expressão do imediato. E nunca, pelo menos detectavelmente, a conclusão conveniente a um lóbi. Maduro, independente, corajoso e subtil. Não é mais do mesmo. Em Portugal, reparem, é raríssimo.

Escrevo hoje, porém, a propósito da crónica em que se revela agastado com aquilo a que chama o excesso de pathos na política portuguesa. Como viemos de uma brutal sucessão de tragédias, concede JPP,  é até certo ponto compreensível que as pessoas se tenham sentido chocadas e emocionalmente perdidas. Mas, afirma, é tempo de virar a página, «enterrar os mortos», sarar as feridas, pensar e actuar. A imprensa - e a televisão, principalmente - deveriam afastar-se, com algum recato, do sofrimento, evitando a exploração quase estetizante e, sem dúvida, imoral, da dor. E o presidente, que assumiu, fossem quais fossem os seus móbiles, um indesmentível papel na tranquilização de populações que sofreram estes acontecimentos pungentes, desgastadas que vinham já de um duro e longo período de austeridade, que as habituara a desconfiar do Poder, bem! o presidente teria agora de não exagerar - ou seja: precisaria de renunciar ao advento, oferecido pelo seu exemplo, de um «reino dos afectos» que se tornasse modelo e guia para a política e para os políticos. Um reino dos afectos tenderia sempre à demagogia e ao populismo; um reino dos afectos descentraria necessariamente as atenções do que é essencial - sendo o essencial a discussão, as decisões, os actos, as medidas.

Por que razão discordo de uma argumentação tão ponderada e razoável? Porque contém, na sua raiz, sob o nome genérico de pathos, que, aliás, JPP traduz muito discutivelmente por emoção, duas modalidades completamente distintas, e até, em certa medida, opostas: uma é a expressão primitiva, espontânea, imediata do sofrimento. (É a que se revela sempre explorável pelos media, no exercício sado-masoquista, despudorado e gratuito, de mergulho nas lágrimas, nos gritos, nas formas tremendas da dor). Outro relevaria antes da inteligência emocional. Numa palavra, a sensibilidade. Ora a sensibilidade, a empatia, a compaixão, a noção do valor e do significado do sofrimento, deveriam, sim, ser modelos e guias da política e dos políticos.

O inverso da sensibilidade é, aliás, o que faz pessoas em cargos de responsabilidade, não só decidir, muitas vezes, quase sempre, como se a tomada de decisão pudesse limitar-se a um cálculo frio e distanciado, mas a dizer a frase errada no momento errado; a verdade, porventura, mas a verdade errada (no tempo, na forma), de um computador ou de um robot. Pedro Passos Coelho brindou-nos com um curso de tudo quanto se não deve fazer ou se não deve ser nesse campo. Cavaco Silva também. António Costa tem dias. Mas, fundamentalmente, Marcelo Rebelo de Sousa mostra essa percepção e essa capacidade, com a qual devíamos aprender. É parte do que lhe cabe fazer. Pode fatigar-nos, ou parecer-nos hipócrita, ou demasiado fácil. Observo que principia a irritar sectores cada vez mais vastos. Até porque se teme, por outro lado, que a comparação prejudique o primeiro-ministro. Ora António Costa, sublinha JPP, deveria ser um homem do logos, não do pathos. Todos os ministros. Todos os governantes.

Penso, pelo contrário, que o logos deve estar saturado em pathos. Não por preocupação eleitoralista, evidentemente, mas porque um político profundo é um sujeito completo. A sensibilidade não se encomenda nem se finge. Daríamos rapidamente pelo logro. E seria pior a emenda do que o soneto. Ou existe ou não existe. A sensibilidade e o sentimento residem no centro de uma governação profunda, que se não esgota nas ideias.
 Não se trata de ter de carpir mágoas colectivas ao pé das pessoas, entre beijos e abraços. Mas, em última análise, o que conta é a compaixão - e não ter pudor de mostrá-la quando as pessoas precisam de a ver e de a ouvir. E de a sentir.


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