quarta-feira, 29 de novembro de 2017

UM PUM ENTRE NAMORADOS


Certa dramática ocasião, era eu um apaixonado imberbe, inseguro e frágil, passeava nervosamente com uma recém-namorada, quando a coisa ocorreu. Um flato meu abriu caminho e fez-se ouvir. Lembro-me de que disse "oh diabo!", com uma preocupação maior do que a que a infeliz escolha de palavras pode sugerir: na verdade, senti que a existência tal como a conhecia, acabara, digamos, de dar o peido-mestre.

A minha namorada de então esteve perfeitamente à altura. Perguntou-me "que foi?" e como eu quisesse saber "não ouviste?", respondeu-me com outra pergunta: "Não ouvi o quê?" Não se apercebera, portanto. Rejubilei. Nem tudo estava perdido. Salvara-se a relação. Ainda havia milagres.

Soube, só anos mais tarde, que ela ouvira, e bem, o inconfundível flato, e que manter, a seguir, a compostura, lhe custara o esforço tremendo de conter o riso. O seu ar inocente e blasé devia-se à luta íntima para não se desfazer em gargalhadas.

Aonde me chegue a memória, Jô Soares, um comediante indispensável, foi a primeira pessoa a quem ouvi o elogio do flato na relação amorosa. Dizia ele que seria esse o maior sinal de à-vontade em casal, da confiança absoluta entre os dois: estar-se-ia com o amor da sua vida como se está consigo mesmo, sem constrangimentos ou vergonhas.

Depois, deparei muitas vezes com a mesma tese: uma relação franqueou o patamar da franqueza quando se assumiu o primeiro pum. Ora, escrevo esta crónica para, precisamente, refutar tamanho erro. Penso, pelo contrário, que a perda de pudor perante o ou a amado(a) constitui o princípio do desamor. Não significa que tenha uma relação autêntica: significa que já não quero saber. Não significa que se entrou, libertadoramente, em modo de confiança: significa que a pessoa se tornou, para mim, isso sim, um par de pantufas confortáveis ou um camisola velha.

O pudor não revela distância nem menos à-vontade. Revela cuidado. Não revela a intenção de enganar o outro, maquilhando a própria natureza, mas o gosto de agradar, de poupar o seu amor ao mau-cheiro (aos ruídos das entranhas em digestão, ao espectáculo da defecação ou de caçar macacos do nariz, por exemplo).

O despudor é a morte do desejo e do interesse. A exposição da minha animalidade é a perda do respeito. O pudor não é o fingimento. É o que me faz querer e mostrar-me com qualidade perante a pessoa que amo. Me faz querer apresentar-me em condições. Pentear-me para ela. Ou não sorver a sopa na sua presença. Não é fazer cerimónia. É considerar que o amor não justifica o desleixo. Pelo contrário.

sábado, 11 de novembro de 2017

E SE FOSSE CONSIGO?


Um militante da Juventude Centrista, cujo nome, honestamente, não recordo e não tenho paciência para ir procurar (não sendo este meu lapso, portanto, uma táctica retórica de menorização do adversário), escreveu uma crónica no Observador, aparentemente acerca do Urban, dos seguranças e do racismo, mas, na verdade, acerca de si próprio.

Este jovem inventou uma anedota que lhe pareceu engraçadíssima. Reproduzo de memória: "o karma é tramado. O Urban foi barrado por um indiano de ascendência africana." (Para quem não esteja familiarizado com esta saga, o governo de Costa encerrou a discoteca.)

Ao que parece, a piada foi mal interpretada. Não entendendo a ironia de que julga ter o usufruto exclusivo, a "esquerda", escreve ele, leu, nestas palavras, uma observação racista. E o jovem indignava-se, como se, para a esquerda, uma pessoa de direita tivesse de ser racista; tivesse de aplaudir seguranças que barram a entrada a pretos; ou que batem em pessoas; ou, pior que tudo: não pudesse ter sentido de humor; ou não fosse capaz de ironia. Porque ele tem, ele é: defende a igualdade entre os homens, até como cristão. Preocupa-se com valores e com os desfavorecidos; abomina a prepotência; tem imenso sentido de humor. (Chega a aventar que, se a sua piada fosse usada por um stand-up comedian, seria sucesso garantido). Enuncia as suas incompreendidas virtudes. Um pouco mais, e acrescentava que era de esquerda.

O problema, como vêem, é menoríssimo. O título, O que Faria se Fosse Consigo? ou algo no género, teria graça se se tratasse, também, de uma ironia. Refere-se à situação dos que foram barrados à entrada do Urban por pertencerem à etnia errada? À dos que foram esmurrados e pontapeados? Já pensou como se sentiria no seu lugar? Não. Refere-se ao seu, dele, próprio lugar. Ser tão bom, e tão incompreendido pelos biltres da esquerda. Ter tanto humor, e não perceberem. Achar uma piada fantástica e, em vez de a propagarem por essa Internet fora, insultarem-no agrestemente.

Em primeiro lugar, a piada é boa. Não é excelente, é apenas boa. Em segundo lugar, é mau que a tenham interpretado sem lhe detectar a ironia. Não é o fim do mundo, é mau. Mas, caramba! as redes sociais são o exemplo extremo de um contínuo pulular de equívocos e distorções. Não se vai ao Facebook ou ao Tweeter para pensar ou fazer pensar, a não ser em raríssimas excepções que talvez se tenham enganado no meio. Vai-se para odiar, combater ou partilhar.

Em terceiro lugar, de todos os equívocos possíveis, este era o mais previsível. Céus! Se me tivesse perguntado antes de a publicar, eu tinha-o advertido. Não porque não haja inteligência, ironia e humor à direita (consumo com grande prazer Pedro Mexia ou João Pereira Coutinho), mas porque é quase uma reacção pavloviana julgar-se que um jovem centrista que escreve uma graça alusiva à etnia do primeiro-ministro (que, obviamente, ele ataca sempre que pode), contudo não o esteja a fazer, uma vez na vida, com intuito crítico ou pejorativo. Sobretudo se não soubermos (o jovem centrista bem o sublinha agora, mas quem teria, então, de conhecer esses elementos da sua biografia?) que chamou irmãos a colegas negros, ou que foi um grande amigo de Naraná Coissoró.

À parte tudo isto, o humor e a ironia medem-se no modo como reagimos às afrontas. Uma pessoa com sentido de humor não precisava de insultar a esquerda inteira, numa crónica que redigiu tremendo, sobre as teclas, de indignação e fúria. É dar-se demasiada importância. Não se afobe. Na esquerda há gente estúpida, como na direita existe certamente quem o não seja. Em geral, nas redes sociais, são-no quase todos. A isso se reduz a sua orientação política. E deixe lá. Se a política o desiludir, terá sempre possibilidade de se dedicar ao stand-up.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

«HEY, TEATCHER!»


No seu princípio, a escola é uma ideia bem achada. Os sujeitos em formação reúnem-se entre pares, convivendo uns com os outros, ao invés de crescerem encarcerados no seio de uma família; descobrem-se mutuamente; testam, em grupos maiores ou menores, os seus sentimentos, as expectativas possíveis; e treinam as formas de relacionamento e comunicação. Em tempos bem definidos, encontram-se sob a orientação de um adulto especializado, que lhes transmite (ou acorda! ou adormece!) conhecimentos.

O problema reside em que, em vários níveis, a escola não evoluiu. Não evolui. As sociedades mudam, as culturas transformam-se, os conhecimentos tornam-se cada vez mais profundos e sofisticados, os jovens têm outros preconceitos, outros interesses e outros modos de comunicar e se relacionar, num cenário que não apreende nem se adapta e, portanto, não acompanha a vertiginosa e complexa metamorfose.

Compreendo, naturalmente, que uma escola deva, em certa medida, ser conservadora. Afinal, é ela a unidade que subjaz às alterações; a forma de ligação a um saber que dá sentido à comunidade, a uma tradição por ela assumido, até certo ponto indiscutível; a instituição que disponibiliza um legado. Mas é fácil (e cómodo) que se reduza apenas a isso, como se os jovens não precisassem senão de ser convertidos em adultos do século XIX. Professores cansados e sem chama, ou preocupados, legitimamente, com os problemas laborais de uma carreira ingrata e humilhada, ou seja, professores que são funcionários sem qualquer particular vocação, desmotivados, exasperados com os comportamentos de alunos, que não entendem e não se adequam aos velhos moldes, fazem da escola o lugar do passado e da seca, da cegueira e da surdez.

Aliás, essa é a visão de escola promovida por sucessivos ministérios. O sistema de funcionários-tipo, levados a um trabalho que deve traduzir-se em horas escrupulosas de entrada e saída, planificações, reuniões, actas, fichas-padrão e testes-padrão. É uma mentalidade que se arrepia perante a sugestão de desmontar o programa, o plano, o esquema, o horário. Que estremece ante a ideia, não de confinar os alunos mas levá-los a sair, a visitar e a conhecer. Metaforicamente, também: tudo o que não seja confiná-los a um saber concentrado nas sebentas que lhes carregam as mochilas - que é um saber ultrapassado: os alunos de ciências pensam newtoniamente, sem o menor vislumbre do que seja Física Quântica e Mecânica Quântica; em Português, a literatura foi perdendo uma importância que nunca totalmente recuperou, mais autor, menos autor; em Filosofia - que contra-senso - a «matéria» evita, com prudente minúcia, qualquer atrevimento ao espanto e ao «pensar por si próprio» (não, não se encapota, aqui, um convite à espontaneidade fácil e superficial do pensar: não se trata de uma sugestão de regresso ao "eduquês"), resumida a uma série de frases feitas e sínteses de teorias, que os alunos deverão decorar, se querem estar preparados para um exame com perguntas de escolha múltipla -, tudo o que seja estimular-lhes a curiosidade e torná-los capazes de uma crítica ao senso-comum e à falácia, lhes eduque o gosto e o bom-gosto, estará eternamente vedado à escola. Ou não passará da excepção, que alguns professores abnegados só já cada vez mais dificilmente conseguirão ainda praticar. 

Na verdade, é pena. Porque uma escola do futuro é uma possibilidade minada à partida. Porque uma escola que apresenta as obras originais, em vez de resumos e «excertos» das sebentas, é um projecto a que se corta as pernas. Porque professores que se actualizem, e façam da própria leitura e de um itinerário pessoal de visitas a exposições ou participação em conferências, uma parte essencial da sua própria educação como educadores, em lugar de inúteis, pífias, ridículas (e, em geral, pagas!) «acções de formação», não constam do que a tutela e as direcções pretendem.

Não sei - e este seria outro problema - se as tendências que registei são inevitáveis num sistema de ensino público e democrático. Se estes dois adjectivos remetem necessariamente para uma escola inferior e pobre, sem exigências que não a de formar cidadãos de acordo com os valores da polis. (Valores, esses, que fundam a normalidade transmitida e, obviamente, nunca questionada: nem mesmo em Filosofia). Não sei se formar significa, a esta luz, abranger e integrar no sistema, mais do que educar, aguçar o espírito crítico e o dom do espanto. Não sei. Pergunto.

domingo, 5 de novembro de 2017

PATHOS


Não deixo de ler José Pacheco Pereira com muito interesse e prazer. Poderá ter-me provocado certa vertigem a rapidez com que mudou de clube ideológico ao longo dos anos, mas conformei-me; ou pode ser que me sinta preconceituosamente desconfortável devido à ligação que mantém com um partido de onde nada de bom veio ao país, e em que, de resto, é controverso e mal aceite. Contudo, descobri, há muito, que, esteja ou não de acordo com ele (e estou bastas vezes, e bastas outras não estou), o seu ponto de vista é sempre um ponto de vista - não uma "opinião", não mera doxa, nunca o reflexo do que se diz, nunca uma expressão do imediato. E nunca, pelo menos detectavelmente, a conclusão conveniente a um lóbi. Maduro, independente, corajoso e subtil. Não é mais do mesmo. Em Portugal, reparem, é raríssimo.

Escrevo hoje, porém, a propósito da crónica em que se revela agastado com aquilo a que chama o excesso de pathos na política portuguesa. Como viemos de uma brutal sucessão de tragédias, concede JPP,  é até certo ponto compreensível que as pessoas se tenham sentido chocadas e emocionalmente perdidas. Mas, afirma, é tempo de virar a página, «enterrar os mortos», sarar as feridas, pensar e actuar. A imprensa - e a televisão, principalmente - deveriam afastar-se, com algum recato, do sofrimento, evitando a exploração quase estetizante e, sem dúvida, imoral, da dor. E o presidente, que assumiu, fossem quais fossem os seus móbiles, um indesmentível papel na tranquilização de populações que sofreram estes acontecimentos pungentes, desgastadas que vinham já de um duro e longo período de austeridade, que as habituara a desconfiar do Poder, bem! o presidente teria agora de não exagerar - ou seja: precisaria de renunciar ao advento, oferecido pelo seu exemplo, de um «reino dos afectos» que se tornasse modelo e guia para a política e para os políticos. Um reino dos afectos tenderia sempre à demagogia e ao populismo; um reino dos afectos descentraria necessariamente as atenções do que é essencial - sendo o essencial a discussão, as decisões, os actos, as medidas.

Por que razão discordo de uma argumentação tão ponderada e razoável? Porque contém, na sua raiz, sob o nome genérico de pathos, que, aliás, JPP traduz muito discutivelmente por emoção, duas modalidades completamente distintas, e até, em certa medida, opostas: uma é a expressão primitiva, espontânea, imediata do sofrimento. (É a que se revela sempre explorável pelos media, no exercício sado-masoquista, despudorado e gratuito, de mergulho nas lágrimas, nos gritos, nas formas tremendas da dor). Outro relevaria antes da inteligência emocional. Numa palavra, a sensibilidade. Ora a sensibilidade, a empatia, a compaixão, a noção do valor e do significado do sofrimento, deveriam, sim, ser modelos e guias da política e dos políticos.

O inverso da sensibilidade é, aliás, o que faz pessoas em cargos de responsabilidade, não só decidir, muitas vezes, quase sempre, como se a tomada de decisão pudesse limitar-se a um cálculo frio e distanciado, mas a dizer a frase errada no momento errado; a verdade, porventura, mas a verdade errada (no tempo, na forma), de um computador ou de um robot. Pedro Passos Coelho brindou-nos com um curso de tudo quanto se não deve fazer ou se não deve ser nesse campo. Cavaco Silva também. António Costa tem dias. Mas, fundamentalmente, Marcelo Rebelo de Sousa mostra essa percepção e essa capacidade, com a qual devíamos aprender. É parte do que lhe cabe fazer. Pode fatigar-nos, ou parecer-nos hipócrita, ou demasiado fácil. Observo que principia a irritar sectores cada vez mais vastos. Até porque se teme, por outro lado, que a comparação prejudique o primeiro-ministro. Ora António Costa, sublinha JPP, deveria ser um homem do logos, não do pathos. Todos os ministros. Todos os governantes.

Penso, pelo contrário, que o logos deve estar saturado em pathos. Não por preocupação eleitoralista, evidentemente, mas porque um político profundo é um sujeito completo. A sensibilidade não se encomenda nem se finge. Daríamos rapidamente pelo logro. E seria pior a emenda do que o soneto. Ou existe ou não existe. A sensibilidade e o sentimento residem no centro de uma governação profunda, que se não esgota nas ideias.
 Não se trata de ter de carpir mágoas colectivas ao pé das pessoas, entre beijos e abraços. Mas, em última análise, o que conta é a compaixão - e não ter pudor de mostrá-la quando as pessoas precisam de a ver e de a ouvir. E de a sentir.


sexta-feira, 3 de novembro de 2017

FILOSOFIA POLÍTICA


Releio, num ensaio antigo de Allan Bloom, a sua resposta à pergunta "Como deveria ser educada a próxima geração de filósofos políticos?", que o próprio Bloom, aliás, converte nesta outra pergunta: "Como deverá a próxima geração de professores de filosofia política ser educada?"

E no que afirma o Autor, reconheço uma tese que me parece tão certeira como simples, mas, no confronto com a realidade, só poderá arrastar-nos para o pessimismo. O segredo residiria na leitura dos textos políticos. No conhecimento dos clássicos, de Sócrates (isto é, de Platão) aos contemporâneos, e numa contínua discussão com todos eles, através da qual procuraríamos, fundamentalmente, "a sabedoria acerca da melhor forma de viver, do bem mais vasto, ou da justiça e do melhor dos regimes."

De certo modo, argumenta Bloom, esta busca pressuporia a existência do bem e a nossa capacidade para o reconhecer racionalmente. E no entanto, duas correntes dominantes do nosso tempo, o positivismo e o historicismo, negam essa possibilidade - ou, até, a sua conveniência.

Por outro lado, os homens que se dedicam, hoje, à política, são, em geral, o mais distante possível de filósofos políticos. Desejam ser apenas "políticos": partem unicamente do seu próprio presente, treinados numa luta estritamente ideológica, e nutrindo, pelo exercício teórico, ou pelas ideias dos pensadores do passado, um desprezo e uma ignorância que chegam a ser sublimes.

Falo, de resto, dos políticos em geral, da Direita à Esquerda. Se os primeiros raramente vão além, quando aí sequer chegam, de reivindicar um putativo legado de Sá Carneiro, os outros fixaram-se em Marx, Lenine ou Trotski. É pouco para se ter, em política, um pensamento. Afinal, recorda Bloom, mesmo os pensadores que mais inovaram e quiseram transformar, ou transformaram de facto, os que fundavam uma visão e uma acção originais, em ruptura com a tradição, faziam-no a partir de um conhecimento dessa tradição, que daria, precisamente, sentido ao seu gesto revolucionário.

Nos debates, na Assembleia ou no interior dos partidos, em televisão ou em artigos e colunas de jornal, o que testemunhamos não é tanto o pulular de ideias erradas. É a ignorância de ideias. É a ignorância dos problemas, num sentido profundo e filosófico da palavra. É a substituição de qualquer suspeita de pensamento, por princípios partidários, frases feitas, sons que se colam ao ouvido, ruído e falácias. É um meio em que se não tem consciência de tal realidade como um mal ou uma falha. Pelo contrário: as pessoas são educadas para um tal tipo de jogo e combate, e aspiram apenas a ser os maiores nesse género de luta e de retórica menores.

Começo a suspeitar que é uma forma que se implantou no mundo inteiro. Embora algo me recorde que, no capítulo da incultura política, nós, portugueses, e os políticos que, provavelmente, são os que merecemos, devemos estar muitíssimo bem colocados.