sábado, 14 de outubro de 2017

NARRATIVAS


Quero principiar por agradecer ao Eng. Sócrates a reintrodução do termo "narrativa", com o sentido que, aqui, abundantemente empregarei, e que tão conveniente se me mostrará.
Ironizo, é claro. Mas, ainda assim, bastaria este agradecimento inicial para que muita gente desatasse a criticar-me a pretexto das alegadas malfeitorias de Sócrates. Como se a coincidência com ele no uso de um termo, por um inevitável efeito de contaminação, fizesse de mim, necessariamente, um "socrático".

A questão é, neste caso, num reflexo invertido, a mesma: que uma posição seja abusivamente aproveitada por indesejáveis, que lá terão as suas motivações, não nos ensina rigorosamente nada acerca da justeza dessa posição. Se eu dissesse que a Madeira é uma ilha e, porventura, o espírito de Salazar viesse dar-me razão, esse dispensável apoio não me tornaria fascista. Tudo isto a propósito de a manifestação contra a estátua de Vieira ter sido impedida por um bando de skinheads, esses leitores profundos, esses vieiristas confessos. A partir deste momento, pareceria mais difícil amarmos Vieira, a sua prosa, até a sua estátua, sem que nos confundissem com um skinhead.

Visto assim, percebe-se depressa o carácter falacioso do argumento. Arrumado este equívoco, aparentemente menor, mas que tem sido por demais utilizado, o que está verdadeiramente em questão? Ergue-se, no Chiado, uma estátua a Padre António Vieira. Há indiozinhos a seus pés. A cruz erguida em sua mão. Fizeram-se discursos que não ouvi (do Presidente da Câmara, o da República), mas dou de barato que possam ter sido maioritariamente infelizes.

Que simboliza uma estátua a Padre António Vieira, em plena Lisboa, na verdade adequadamente próxima da igreja onde ele pregou? Parece-me claro. Simboliza a homenagem de um país, sim, em 2017, a um escritor que honra a Língua portuguesa, de que foi um dos grandes cultores (o insuspeito Mário de Carvalho considera-o o maior escritor português de todos os tempos, o que pode discutir-se, mas não seria pequena coisa) e um dos retóricos mais estimulantes na História da humanidade. Se isso e o facto de ter pregado a igualdade dos homens, contra a visão do regime e a da ordem religiosa de que fazia parte, não justificam que a estátua não seja, em 2017, um anacronismo, não sei o que justificaria.

Ver, nela, o símbolo do louvor de um "esclavagismo selectivo", ou a apologia da pretensa "excepcionalidade do luso-colonialismo", só pode advir de uma ideia, lamento dizê-lo, um tanto complexada e paranóica. É a criação de uma narrativa disruptora, que passa (tem passado) facilmente por anti-Portugal. Uma coisa é desmistificar. Outra é não contextualizar.

Parecendo que não, esta questão é um instrumento que tem, também, muitas cordas por onde tocar. Argumentam, alguns, que a época não deve ser tomada como uma desculpa. Que, se o fosse, não poderíamos estudar criticamente nenhuma ideia, nenhum movimento, nenhuma personagem pretéritos, presos de um relativismo histórico, incapaz
de juízo e critério morais sobre o passado. Exemplificam com os odiosos casos da Santa Inquisição ou de Hitler, e da impossibilidade relativista de sobre os seus actos nos pronunciarmos eticamente. São, é evidente, objecções baseadas em analogias superficiais e perigosas.

O relativismo não critica, porque considera todos os valores igualmente respeitáveis em função de condições específicas, de lugar e de época. Não sou um relativista. Mas, no outro extremo, o procedimento consistiria em focar, apenas, os pontos que convêm para, a partir deles, se constituir uma narrativa moral, crítica, do século XXI, sobre as figuras da História. A esta luz, não há homens de época, pensando, mesmo quando para além do seu tempo, segundo a lógica do seu tempo.

Podemos pedir contas a Aristóteles (sem o qual não existiria, porventura, o ímpeto inicial para a maioria das pesquisas científicas tal como as delimitamos hoje), por haver feito a apologia da escravatura. E proscrevê-lo. Ou a John Locke, pela mesma defesa do esclavagismo. Sendo que o que faz sentido, penso eu, é compreendê-lo como um dos maiores pensadores da tolerância, da liberdade, e um dos pilares da política como teoria e acção reflectida. Sem deixar de lamentar a sua cegueira, que é a de todo um tempo.

No meio desta discussão, usam-se grandes etiquetas para colar aos oponentes, e aponta-se o dedo a qualquer narrativa diferente da própria. O  desacordo, este desacordo, é sempre catalogado como afim do discurso dos Senhores, dos colonialistas, dos brancos. Não há meio-termo nem subtilezas. A ideia-chave é, por parte dos detractores de Vieira, a de que aqueles que o não criticam estão a ser cúmplices de um passado ignominioso, pelo qual Portugal deveria pedir desculpas. E sacode-se tristemente a cabeça: afinal, concluem alguns, esta cumplicidade seria transversal a muitos portugueses, de esquerda ou direita, que não foram capazes da fazer a sua desintoxicação mental.

E tudo isto é um pouco pequenino, complexado e ressentido. Tudo isto traduz, no plano simbólico, apenas uma luta pela inversão de poderes. A exigência de um pedido de desculpas por parte de Portugal significaria isto: Não é verdade que queiramos a igualdade. Os nossos antepassados foram vítimas dos vossos antepassados. Seremos sempre descendentes das vítimas, e o lugar que vos compete terá de ser, para sempre, o da culpa e o do ressarcimento. Nenhum dos vossos antepassados tem qualquer direito ao louvor e à admiração. Elogiá-lo é pactuar com o crime.

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