domingo, 8 de outubro de 2017

"ESCRAVAGISMO SELETIVO"



Evidentemente, onde vigore a liberdade de expressão, poderemos pensar de forma estranha, e apresentar as nossas ideias;  alinhavar os argumentos; partilhá-los, criar movimentos de massas em torno dos princípios que desejaríamos que fossem seguidos. Em última análise, o "estranho" é apenas o inabitual, o ainda não testado, mas quem sabe se a verdade do futuro.

Em dado ponto dos movimentos no palco do meu país, contudo, pergunto-me o que leva pessoas, ou grupos de pessoas, a defender ideias não apenas estranhas, mas tão incredivelmente aberrantes que nada senão a ignorância justifica, e a proclamá-las em voz alta, e a manifestar-se em nome delas.

Uma concentração contra a estátua do Padre António Vieira vem de que obscuras forças de esquerda? Com que fito? Por que razão, sinceramente? Rever a História portuguesa? Desmistificá-la? Expurgá-la de falsos heróis? Criar atrito? Fazer de uma estátua a uma figura cuja obra é ainda estudada - e justamente -, uma "causa fracturante"?

Quem leu Padre António Vieira sabe, pelo menos, duas coisas: que a sua escrita é, por si só, uma lição brilhante de retórica e do esplendor da língua portuguesa; e que a sua argumentação segue sempre a linha evangélica da igualdade de todos os homens, fossem brancos, pretos ou índios. Mas, repito, era preciso tê-lo lido.
Sendo uma figura de uma época, de uma ordem religiosa, e de um Império, cuja grandiosidade, claro, enalteceu, Vieira foi, nessa época, entre os jesuítas, e nesse império, uma voz moderna, progressiva, ensinando e pregando precisamente o valor de todos os homens e da emancipação.

Querer reduzi-lo a um "escravagista seletivo" (SIC), ao ponta-de-lança de uma igreja, que se quer atacar, ou de um imperialismo que liquidou sistematicamente os povos indígenas, é, no mínimo, não ter lido ou não ter compreendido - nem Vieira, nem os seus opositores, à época; é ter da História uma visão tacanha, ao nível, já agora, do Acordo Ortográfico no qual os manifestantes redigem os seus manifestos e anúncios.

Dir-me-ão: Mau! Que tem o Acordo Ortográfico que ver com o resto?
Respondo: incluem-se ambos, o Acordo e a manifestação anti-Vieira, objectivamente, numa mesma tendência para a simplificação e para o empobrecimento, numa mesma cegueira que arrasa o que não compreende, num movimento veloz para a supressão de singularidades mais complexas, mais ricas, mais "difíceis", seja na História, seja na Língua, a caminho de um Reino dos Simples. Portanto, que Vieira tenha sido um grande, grande, grande cultor da Língua Portuguesa é, de tudo, o que menos lhes interessa. O que nada lhes diz.

Esta manifestação não é de esquerda nem é de direita. A imbecilidade só casualmente ocupa um território político. É sempre, no fundo, o espírito ressentido da mediocridade a rever o que sempre o transcendeu. É apenas o esforço do nivelamento por baixo.

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