sábado, 30 de setembro de 2017

VOCÊ


O escritor Mário de Carvalho, talentoso, inteligente e cordato, tem, porém, autênticas fúrias asassinas quando o tratam por você.

Você é, realmente, uma expressão desrespeitosa e descortês. Usá-la, em vez de "o senhor" (não precisa de ser "o sr. doutor", mas apenas "o senhor", ou "o Mário de Carvalho", como em: «Mas diga-me, Mário de Carvalho, o que pensa o Mário de Carvalho sobre o assunto?»), implica sempre uma desconsideração que, também a mim, consegue arrepiar bastante. Não é pior nem melhor do que tratarem-me por "ó chefe", com a ironia subentendida. É igual.

Ora Mário de Carvalho, que teve de passar, num destes dias, por um hospital (ou um centro específico de tratamento, confesso que não sou capaz de precisar), elogiava a competência, mesmo comparando internacionalmente, do modo como foi atendido, mas acrescentava, com alguma tristeza, que, muitos desses profissionais, simpáticos e eficientes, eram, todavia, da escola do você. Você para aqui, você para acolá.

Eis onde reside o ponto.

Profissionais simpáticos e competentes, dando o seu melhor por um doente que os procurou numa aflição, não estariam com certeza, intencionalmente, a desrespeitá-lo. Na mente daqueles, você não significaria um tratamento que menoriza. É natural. Ainda me lembro da estupefacção de um aluno por, uma vez, lhe ter chamado a atenção para a forma como se me dirigia. "Mas", retorquiu, não alcançando o que me incomodara, "eu disse você. Não disse tu."

Estamos perante uma questão geracional da língua portuguesa. É uma análise que respeita à pragmática. Não existe, no uso que os jovens fazem do termo, a intenção que os mais velhos acreditam identificar.
Merece a pena a luta, se o uso de uma língua inevitavelmente se metamorfoseará?

 Merece, sim. Creio que Mário de Carvalho tem razão, como argumentarei em duas linhas. E que dependerá, em última instância, unicamente dos educadores, que as gerações desconhecedoras aprendam a subtileza na diferenciação. Não por snobismo. Não pela preocupação classista com a hierarquização reflectida no tratamento.  (Só por ignorância se poderia acusar, disso, Mário de Carvalho). Mas pelo valor da cortesia; e, quanto mais não seja, porque a subtileza no emprego dos termos é sempre sinal de uma língua mais rica e complexa, capaz de carregar de cambiantes a comunicação. Enquanto a indiferenciação das palavras representa, necessariamente, um empobrecimento. Da língua. Da comunicação. Das relações.

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