sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O INTELECTUAL DE ESQUERDA


              
Um intelectual de esquerda é  um tipo em quem a ética e a cultura estão divorciadas.

     Em O Caminho para Wigan Pier, George Orwell tem um capítulo inesquecível, impiedoso na sua mordacidade, acerca do intelectual de esquerda, que no-lo apresenta segundo um padrão de que fariam parte, desde certas neuroses ideológicas, até à higiene (ou falta dela).
     O livro merece ser lido por muitas razões. Maria Filomena Mónica recomendava-o, inclusivamente, como imprescindível numa bibliografia séria da literatura para o estudante de sociologia. O capítulo sobre a Esquerda Caviar, como se lhe chama hoje, é apenas uma parte menor. Mas foi a que verdadeiramente causou dissabores ao Autor.

     A figura do intelectual de esquerda é a de alguém que não está em paz com nada. Nem com as suas origens, que abomina e mascara, nem com as classes a que se devota, porque a sua relação com os "trabalhadores" contém necessariamente tensões e equívocos, fascínios e desprezos (mútuos) que não facilitam a comunicação.

     O intelectual de esquerda é sempre mais radical do que o operário vulgar. Deseja a mudança profunda e súbita. O proletariado ambiciona poder de compra, enquanto o intelectual é um crítico feroz da sociedade de consumo. Sabe perfeitamente que esta seria o equivalente contemporâneo à caverna, sobre que escrevia Platão, na sua famosa alegoria. Apenas sombras. Apenas ilusões. Ora os "trabalhadores" não pretendem senão poder entrar nessa caverna, como se fosse um clube. É sempre numa vida melhor que pensam. Não porque não aspirem à dignidade. Mas porque, para eles, a dignidade se mede sempre em bens possuídos e ostentáveis.

     Um operário ou um camponês odeiam os livros ou os filmes que os intelectuais de esquerda veneram. O "povo trabalhador" não frui Godard nem ri com o humor neurótico de Woody Allen. Nunca pagaria para ver Bergman ou para ler os neo-realistas. Muito menos Brecht, de quem também não sou o adepto-mor. Os "trabalhadores" prefeririam MPB (não, não Música Popular Brasileira, mas música popular brejeira) a fosse que música erudita, revolucionária, avant-garde.

     A tal ponto Lenine o sabia, que, para ele, fluente em alemão, francês, inglês, leitor de Hegel ou de Marx e Engels na língua original, ou seja, um autêntico intelectual, nunca houve dúvidas sobre que tinham de ser estes a decidir o que era melhor para o povo. Muito antes dele, Platão já tivera a mesma convicção. Os pobres não são os melhores juízes dos seus próprios interesses. Como as crianças, precisam de um pai que pense por eles.

     A esquerda aprendeu à sua custa. A democracia impôs-se. Para o bem e para o mal, aliás. (Deu-nos Trump; deu-nos o Brexit; deu-nos Isaltino). E os intelectuais democratizaram-se. Talvez não tenham tido outro remédio. Já sabem escutar. Ou fingem melhor. Ainda "explicam" os resultados segundo os seus modelos teóricos. Mas não insistem em que todos devem ler livros de filosofia ou apreciar teatro. Não é que os "trabalhadores" não conseguissem por causa de qualquer inferioridade intrínseca. É que os intelectuais perceberam, por fim, que não lhes cabe ditar do que devem as pessoas gostar. E que não se educa ninguém à força.




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