sábado, 26 de agosto de 2017

REVISÃO DA MATÉRIA DADA


Aos 59 anos, uma pessoa interroga-se. A bela utopia de uma alma que subsista para além do corpo parece-me elevadamente improvável. Bem como a ideia de que ela pudesse renascer em algum outro corpo que não, precisamente, este. O meu corpo e a minha alma são, digamos assim, almas gémeas. O meu pensamento ou as minhas emoções nunca estariam à vontade em outra casa. Sentir-me-ia embaraçado por me revelar, sem esconderijo algum, a um corpo diferente.

Não que, na minha juventude, não tenha sofrido alguns sustos por causa de fantasmas. Uma ou duas noites, certo grupo, no qual me incluía, reuniu-se ao redor de um tabuleiro, como se fossemos jogar monopólio; mas, em vez disso, víamos um pires a mover-se e a comunicar connosco. Essas noites marcaram-me indiscutivelmente. O que é dizer pouco. Porém, inclino-me, hoje, para uma complicada explicação desse fenómeno, que não seria com certeza boa ideia sumariar aqui, mas da qual infiro justamente, a dissipação da estrutura de energia a que chamamos alma, na ausência do corpo que a sustentou.        

Como dizem os jovens, e me repete insistentemente o meu filho, temos uma vida. Há que não desperdiçá-la. Ora tendo, na melhor das hipóteses, percorrido 3/4 do tempo disponível no jogo, torna-se inevitável fazer uma revisão da matéria dada, devendo, aqui, o termo matéria ser tomado literalmente. Se bem que seja, também, uma revisão do espírito dado. Isto é: uma revisão, no seu todo físico e mental, do que me cabia como ponto de partida da existência; do que deixei que disso fizessem; e do que eu próprio, que sou, afinal, isso, com isso e disso fiz. Com isso e disso me fiz.

Duvido que o resultado de tudo passar em revista não seja confrangedor para a maioria das pessoas. O tempo que se perdeu. A parte que se aceitou que nos incorporasse, para que os demais nos aceitassem. As inúteis dependências criadas. O peso - o tremendo peso dos hábitos e do conformismo. O medo - o tremendo medo de explorar os becos (com saída, sem saída, que importa?) que escapam ao hábito e à norma. O adiamento - o tremendo adiamento das utopias e das libertações, das fugas e do prazer, das ideias fixas benéficas e dos projectos abençoados.

Aos 59 anos, percebo, por fim, que a solução terá de ser simplificar. Instaurar um simplex na esfera da minha vida. De algum modo, preciso, como se tende a repetir em vão no início de cada novo ano, de me perguntar se «o que há» é igual ao que «quero». Ou se, a manutenção do que «há», descobrindo-lhe vantagens e pequenas alegrias, não serve para, sobretudo, continuar ignorando, ou adiando, ou recusando o que realmente «quero».

Depois, libertar-me do lastro. Aprender a reconhecer e a distinguir o essencial e o acessório. Se o acessório não pertence ao sentido da minha existência, ao que pode dar-me propósito à vida, então, dispensá-lo. Reaprender a dizer não, como em criança: ao que me desgasta e frustra e já não reconheço como essencial; ao que me ocupa o tempo, a mente, às vezes obsessivamente, e já não reconheço como essencial. E reaprender a dizer sim. Ao que me parecia demasiado caro, ou demasiado trabalhoso, ou demasiado invulgar, ou demasiado insensato, ou demasiado incompreendido, ou demasiado malvisto, ou demasiado demasiado, mas, na obscura, secreta, palpitante parte disto que eu sou, nunca parou de chamar por mim. Porque, em segredo, sempre me foi o essencial.  

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