quinta-feira, 31 de agosto de 2017

PARIS



Tenho o álbum diante de mim. Na ilustração da capa, um balão expõe a fala de uma certa personagem: «Paris será sempre Paris!», diz a senhora. Em seu redor, vemos uma profusão de gente das mais variadas etnias e culturas: argelinos, negros, provavelmente da Costa do Marfim ou da Somália, asiáticos. Numa primeira leitura, a ironia reflecte a cegueira da mulher, a qual se refere a uma Paris de cuja mudança não se apercebeu. Numa segunda leitura, mais filosófica, não há propriamente ironia: existiria, sim, uma essência parisiense que se mantém, independentemente das transformações da sua população, ou da multiplicidade de linguagens e costumes.

Sou um fanático de Paris. Mesmo de uma vez em que deparei com a cidade negligenciada, como um apartamento que não é limpo nem arrumado há demasiado tempo, com rachas visíveis e uma atmosfera geral de abandono, precisei de poucas horas para reencontrar a respiração íntima da sua personalidade.
Já visitei Paris nas mais diversas situações, das mais diferentes maneiras e sob pretextos inenarráveis. Até com o de me ir documentar para a dissertação que escrevia na altura. Com um companheiro tresloucado de aventuras; com uma companheira perigosa de aventuras; em Lua-de-Mel; com meu irmão; com a mulher de então e meu filho; sozinho. Uma das tristezas que conservo é nunca ter conseguido convencer certa namorada a viajar, comigo, até à Cidade com maiúscula (para evitar o lugar-comum «Cidade-Luz»). Que a encara, infelizmente, como um cliché turístico: a Torre Eiffel, o Moulin Rouge, Montparnasse, ou seja, uma cidade que mais valeria comprar dividida por postais ilustrados. Seria motivo bem fundamentado para uma separação se, de facto, essa mulher não fosse infinitamente mais do que o seu preconceito anti-Paris.

Nem quando visitei Paris sozinho me senti só. Chegava sempre carregado de memórias que me devolviam imediatamente ao específico universo parisiense. O dia em que me furtaram a mochila com todos os meus pertences. O episódio da cama por fazer, no hotel. Comer uma maçaroca assada num fogareiro. Deliciar-me escutando o músico de rua, que arrancava melodia a um serrote, fazendo-o vibrar com um arco. Os passeios pelo Jardin du Luxembourg. A descoberta da FNAC, quando em Portugal se não sabia o que era isso. Ou (acreditem!) a descoberta do MacDonald quando em Portugal se não sabia o que isso era. Mas, mais do que tudo, perder-me pelos alfarrabistas do Quartier Latin, vasculhar impensáveis raridades, admirar os pintores e conversar com eles, em Montparnasse. Inebriar-me. Sentir-me a mim mesmo. Reencontrar-me no que em mim me dá mais prazer.

De cada vez que me preparo para regressar a Paris, prezo tanto o planeamento e a antecipação como a visita em si. Entrar num modo específico, decidir o que levar, reler livros em francês. Conheço grandes cidades do mundo - e, paradoxalmente, nunca fui a umas quantas, que não gostaria de morrer sem espreitar. No entanto, surgindo-me a oportunidade, não é nessas cidades que penso imediatamente. E se aproveitasse agora para..? Não senhor. É em Paris. Discuto comigo próprio. Outra vez? Que tal, agora, estoutra? Que tal, agora, aqueloutra? Não há só Paris no mundo, caramba, José António.
É inútil. Há-de ser Paris, uma vez mais. Tic-tac, tic-tac, o plano entrou em marcha.

      

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