sexta-feira, 4 de agosto de 2017
NÃO SE BRINCA COM CERTAS COISAS (MAS NÃO ESTOU A BRINCAR, ESTOU A NARRAR)
A minha... a minha quê? Principiemos, pois, por aí. Que me é, exactamente, a mulher de um meu primo? Quase-cunhada? Cousin in law, atendendo a que ela é norte-americana?
Enfim, essa mulher optimista, certa noite em que eu os convidara para jantar, olhava-me, há já muito tempo, com uma fixidez lancinante, incómoda, perturbadora; como a senhora, repito, é americana e tendemos a esperar que os americanos sejam gente de costumes diferentes, já me preparava para o momento constrangedor em que, sob a mesa, ela fizesse deslizar o seu pé descalço ao encontro do meu, quando, bruscamente, percebi o que lhe atraía a atenção. Uma mancha que tenho na testa. Uma espécie de sinal em que, por sinal, muitas pessoas têm reparado ultimamente.
A teoria de outra conviva é simples: a mancha sempre cá esteve! O cabelo é que já não vai estando. Por esse motivo, mais descoberta, a dita mancha nota-se agora bem.
Devo dizer que uma tal teoria, que atribui a uma calvície galopante o facto de se começar a notar tanto a mancha, não me agrada. Salva-me dela a cousin in law, sempre optimista:
«Não, não é de carreca! Tens que verr isso. I met a guy of your age, and he had a spot exactly like that one. And he died!»
Porque estas coisas não são para brincar (e não se deixem enganar pelo meu tom ligeiro), resolvi levar o aviso muito a sério. Não dormi duas noites e, ao terceiro dia, zarpei para o médico, um senhor de bibe branco que, imediatamente antes de à saída me pedirem que pagasse noventa euros, demorara comigo doze-minutos-doze, nem um mais, para me dizer, com um ar trocista:
«Oh, meu caro! Mas nem sequer é um sinal. [E chamou-lhe outro nome!]. Isso não tem importância. [Mais um pouco, e acrescentava: «Já experimentou lavar com água e sabão?!»]. Se quiser, pode tirar, mas unicamente por razões estéticas. [Por um triz não disse: «Basta puxar, a ver se arranca...»]»
Senti-me defraudado.
Foi como se, imaginem, ao entrar no gabinete do médico me tivesse acontecido tossir, e ele me dissesse: «Nem vale a pena sentar-se. O seu mal é tosse. Não se esqueça de pagar à saída...!»
Cá fora, chovia desalmadamente e eu, na escuridão, não sabia já onde diabo estacionara o carro.
Procurando-o, completamente ensopado, agasalhava-me melhor na gabardina, cruzando ambos os braços sobre o peito. («Cruzando ambos os braços» é uma judiciosa escolha de palavras, uma vez que não poderia ter cruzado um único braço).
Passei, nessa grotesca figura, por duas mulheres, uma das quais, a mais velha, explicava à outra, obviamente mais nova (acerca de mim):
«Desvia-te, Catarina, que esse é dos que abrem as gabardinas para mostrar o pirilau!»
Topo subitamente o carro, enfio-me no interior e arranco, espirrando!
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