terça-feira, 29 de agosto de 2017

HÁ PRÓ MENINO E PRÁ MENINA


Relativamente ao tema dos cadernos de actividades da Porto Editora, um azul, ao que parece mais complexo, para os rapazes, e um cor-de-rosa, dizia-se que mais básico, para as raparigas, passará a existir um A.-RAP e um D.-RAP: Antes de Ricardo Araújo Pereira e Depois de Ricardo Araújo Pereira. Com toda a justiça.

Por mim, arrependo-me amargamente de não ter seguido o meu instinto e publicado de imediato, contracorrente, a crónica que já tinha preparado. Reagia ao vórtice de comentários na internet, muitos deles redigidos por amigas minhas. Pedia-se a cabeça da Porto Editora. Acusavam-na de discriminação. Recordavam que não estávamos na Idade Média. Apelavam para o boicote aos seus livros.

Coros indignados sublinhavam o facto de haver, no nosso país, mais doutoradas do que doutorados. Subia-se de tom. Era uma vaga imparável. Na minha impublicada crónica, da qual repesco, de memória, umas quantas ideias, enunciava a evidência de que sempre se editaram livros destinados ao gosto das raparigas, e outros, ao dos rapazes. Como pai de um casal, assisti à lenta e segura constituição das referências do meu filho, o primogénito; inicialmente, nada o sugeria, até porque, durante muito tempo, ele se identificava com as personagens femininas dos filmes da Disney. Propunha que, por exemplo, em dada brincadeira, fizesse de conta que era o Mowgli, enquanto eu representava o Baloo, e recusava-se: preferia ser a namorada do Mowgli.
Tentei que treinasse futebol num clube, mas foi sempre um sacrifício. Confesso que se tratou de uma fase que me confundiu, mas a que me ajustei sem ruído.
Em contrapartida, a minha filha apreciava o futebol. Nunca se interessou por bonecas, nem carrinhos de bebé, muito menos por apetrechos para o lar.
E no entanto, sem programação (pelo menos consciente) da minha parte, os estereótipos acabaram por se definir na sua vida. Por causa dos amigos e das amigas, da publicidade, de séries de estímulos subliminares? Sem dúvida. Ou também pelo curso intrínseco do seu desenvolvimento? Aí está. A experiência mostrou-me como se formam, naturalmente e desde cedo, interesses e gostos diferenciados, que seria ridículo atribuir exclusivamente a estereótipos e à pressão do meio. Compreendo até que me digam: A origem é indiferente — intrínseca ou cultural, essa padronização redutora, na prática, dos papéis feminino e masculino, deve ser combatida. Mas combater não significa proibir uma realidade complexa.

Meu filho, quando começou a ler, pediu-me que lhe comprasse um Livro dos Rapazes (azul e tudo), o qual, como o manual do escoteiro-mirim, ensinava a montar uma tenda ou a comunicar em código. (Mais tarde, quando o descobriu, a miúda leu o livro, da primeira à última página, deliciada e sem quaisquer complexos. Actualmente, porém, quando a levo à Biblioteca, escolhe sempre livros para raparigas: os que lhe explicam tudo, como ela orgulhosamente diz, sobre a sua pré-adolescência. A preparam para o período, lhe falam das transformações do corpo ou mostram como se maquilhar).

Por péssima que fosse a ideia da editora, não vejo nela senão o desejo rudimentar de lucrar com o facto de os meninos serem fãs de carrinhos e futebolistas e, as meninas, de princesas e penteados. Preconceito teria sido eu não comprar a meu filho, se ele pedisse, o caderno para as raparigas. Em suma, pode ter sido um tiro no pé da Porto Editora. Não vale a pena passar-se à fase do linchamento.

Não desisti da crónica por falta de coragem. Apenas porque me preocupou a insistência dos media em que os exercícios para elas eram mais básicos do que os do caderno para meninos. Pensei: A ser assim, então, de facto, convém ir com cuidado. Ricardo Araújo Pereira, contudo, comprou-os, comparou-os. Nem sequer é sistemática e significativamente verdadeiro que haja uma diferença de grau de dificuldade: aleatoriamente, encontram-se exercícios mais simples ou menos simples num ou noutro.

Não fui a tempo. Agora é inútil: a genial intuição de RAP esvaziou o tema. Acabou a festa. Arrumem as bandeiras e os very-light. A multidão em fúria pode começar a dispersar.

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