terça-feira, 26 de dezembro de 2017

PODEMOS AMAR A OBRA DE UM CIDADÃO INFAME?


O que neste tema custa mais é a ideia de que, se considerarmos extraordinários - e comprarmos! - o livro, o filme ou a música de um artista pessoalmente infame, um cidadão eticamente indigno e repulsivo, parece que, de algum modo, o estaremos a recompensar. Quando sabemos o que fizeram vários, desde os que colaboraram com o nazismo e o estalinismo ou escreveram manifestos anti-semitas, para recuarmos consideravelmente no tempo, até aos que violaram mulheres, ou jovens, ou crianças, para nos situarmos no presente (o tempo do "#metoo"), a sua obra inteira parece-nos irremediavelmente contaminada e condenada. Podemos exibir, na nossa estante, na nossa sala, um seu romance que apreciamos, um seu filme que nos marcou, uma sua música que nos exalta? Podemos consumi-los? Pior que tudo: podemos amá-los? Não significará, isso, pactuarmos com os crimes da pessoa que os realizou? Repito, pois: é possível amarmos a sua obra?

O problema é que sim. A obra não é o autor, e liquidá-la porque quem a criou foi um homem reprovável, não é puni-lo, ou punir a sua memória: é punirmo-nos. É privarmo-nos a nós próprios de uma construção que vale por si, e cuja qualidade a torna digna de nós, e de que dela usufruamos.

A censura, que é sempre um acto que nos rebaixa e avilta, uma vez que consiste em sonegar, aos olhos e aos ouvidos das pessoas, o que as pessoas merecem conhecer, não é aceitável em face da Arte. Mesmo abstraindo do autor - mesmo que o "conteúdo" da obra nos incomode. Com que direito a julgaríamos? A justificação de que  não nos apraz estética ou eticamente seria, é claro, intolerável. A Arte Maior deve atormentar-nos, mais do que pacificar-nos. Tem de nos desafiar, pondo-nos sempre à beira do abismo. A de que a vida do Autor se desvia das nossas regras, mesmo as mais profundas e indiscutíveis, também não. É com o ser humano total, nas suas escolhas, as justas e as terríficas, que nos confrontamos, em qualquer obra autêntica, que, de algum modo, representa o melhor que a humanidade criou - ainda que esse melhor (intelectual, estética, emocionalmente) seja, no concreto, e moralmente, um produto do pior e do mais execrável indivíduo da espécie.

Agora que, aos que já sabíamos que foram pessoas indignas, os racistas, os predadores, os imorais, se juntam novas revelações, e os nossos ídolos continuam diariamente a cair, temos uma reacção de horrorizada incredulidade. Desejamos que sejam punidos pelos seus actos. Não esperamos, não queremos, não admitimos que sejam perdoados em nome da sua Arte - isso seria uma perversão social.

Mas não aceito que, inversamente, a sua obra seja punida, ou escondida, ou censurada, ou apagada, ou ostracizada em vez deles, ou em nome das suas vítimas. Na obra se encontra o seu valor e o seu mérito. A sua grandeza e a sua energia. Na própria obra reside a sua razão de ser.




quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

JOVEM CONSERVADOR DE DIREITA


A ironia é um dom ao alcance de raros. É uma faculdade aristocrática, no melhor sentido da palavra. Quando tentamos exercitá-la em meios muito povoados, onde reina a mediania e se nivela por baixo, como em países selvaticamente capitalistas ou nas redes sociais, é sempre incompreendida e liquidada.

Um dos maiores problemas dos regimes democráticos é, aliás, este mesmo. Como, por si só, o critério "da maioria" não dá conta das virtudes nem das estupidezes de uma maioria específica numa específica situação, ocorre que uma maioria de grunhos possa eleger um grunho-mor para presidente, ou que uma maioria de imponderados possa decidir com base em receios e preconceitos. Acontece que, no Facebook, nada mais fácil do que reunirem-se maiorias de grunhos: tipos intelectual, emocional e culturalmente elementares, incapazes de se pôr no lugar do outro, imunes ao sentido de humor e à ironia, ensopados numa qualquer obsessão promovida a Causa, alheios a razões ou argumentos. Como se sabe, o Facebook é, bastas vezes, refém das denúncias destes grupos de odiadores profissionais. Faz advertências, fecha contas, remove fotografias publicadas. Muitos grunhos não percebem que certo nu é arte, queixam-se, e o nu desaparece. Muitos grunhos sentem-se ofendidos com um post que não entenderam, queixam-se, e o autor é avisado, ou suspenso, ou censurado.

E assim, desaparece, nesta voragem censória, um dos mais inteligentes sítios, que é o Jovem Conservador de Direita. Com um misto absolutamente brilhante de sofisticação intelectual e cultural, de uma sagacidade irónica e com um ferrão crítico certeiros, este jovem, que não seria um único jovem, mas, suponho eu, um grupo, nem seria conservador, e não certamente de direita, funcionou como um Conde d'Abranhos do nosso tempo. Escalpelizava, sob a personagem de um carreirista, os tiques, as ambições, os lugares-comuns dos típicos e sôfregos elementos das juventudes partidárias.

Os comentários dos leitores eram, muitas vezes, atrozes de burrice. Curiosamente, da parte, sobretudo, de grunhos de esquerda, que liam as crónicas estrita e literalmente, sem noção de que a crítica era dirigida precisamente contra uma certa visão da direita. Que as ideias defendidas pelo autor, como "jovem conservador", se auto-destruíam, irónica e deliberadamente, pelo ridículo.

A quem não conhece as impagáveis crónicas, um apelo. Procurem-nas (estão em jornal, estão em livro), repliquem-nas, divirtam-se. O que é muito bom não morre. E em algum outro meio, o jovem conservador há-de ressurgir, com o mesmo ou com outro projecto. Espero-o(s).


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

OS NOVOS VAMPIROS


Uma coisa em que, obviamente, as companhias que proporcionam tv+internet+telemóvel, ou seja, as Nos, as Meo ou as Vodafone deste mundo, não pensam, é que os seus pacientes têm emoções. Quer dizer, que se irritam, ofendem, indignam. A começar logo pela "fidelização", que a curto prazo
 parece um ganho comercial, mas, realmente, enerva o consumidor que se sente mal no casamento. Continuando no tratamento pós-venda dos clientes, que é uma vergonha. (Agendamentos e remarcações sucessivamente incumpridos, sem aviso prévio, por exemplo). Concluindo com cobranças enganosas, propostas em letra miúda com rabo de fora, etc.

Como são grandes empresas, o lado humano escapa-lhes. Basta pensar no jeito que lhes dá que as suas páginas na internet não aceitem reclamações, para se perceber o calibre de Xico-espertismo que os move. Nos EUA, certos incumprimentos ou desleixos seriam ressarcidos. Como estamos em Portugal, onde os tribunais são os mesmos que deixam o Dr. Carrilho ir em paz, ninguém se lembraria de pedir indemnização. E, portanto, as companhias tornaram-se piratas de olho de vidro, perna de pau e cara de mau. Prestam mau serviço e estão sempre prontos para enganar o cliente.

Havendo queixas de consumidores, aliás, embatem sempre em advogados carenciados de qualquer sombra de escrúpulo, desses que enviam cartas ameaçadoras a senhoras idosas por diferenças de cêntimos, e respondem aos mails na prosa feroz de tubarões insensíveis. Não vale a pena chamar a Deco contra o bullying de tais companhias.

Quando mudei de casa e se descobriu que a empresa não tinha condições para instalar o "produto" no meu novo lar - sem que eu tivesse nisso a menor culpa -, fizeram-me pagar a cóima correspondente à minha traição. Lembro-me de ter argumentado: "Mas eu quero manter o contrato. Os senhores é que não estão tecnicamente aptos para a alteração." E de me terem retorquido, sem rir: "O contrato não foi feito consigo, mas com a casa onde morava."

Infelizmente, quem teve de pagar não foi a casa onde eu morava!

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

FREQUENTÍSSIMAS


Como a Igreja Católica se deu ao luxo de preencher a História com malfeitorias, que não foram propriamente pormenores, desde as Cruzadas, à perseguição, tortura e assassínio de hereges, inventou-se, em tempo de reconciliação e auto-crítica, um argumento que viria para ficar. A Igreja é composta por homens, e os homens, inevitavelmente erram. Se alguém o sabe bem (ainda que não fosse omnipotente) é o Próprio Deus. Os erros são humanos, mesmo quando praticados em nome Do que nunca erra.

O argumento foi reciclado, séculos depois, para se lhe ajustar o comunismo: o mesmo fio retórico. Uma ideia justa, e boa por princípio, pode, porém, desafinar no momento em que a realizamos, por culpa dos homens que a traduziram do mundo ideal para o mundo sensível. Marx, visto pela lupa desse argumento, teria pensado bem, mas a passagem à prática foi obra de ambiciosos, ou psicopatas, como Staline. Discute-se ainda, em certas esferas ideológicas, se Lenine estaria, neste processo, do lado dos bons e justos, ou, precisamente, dos que principiaram a estragar uma ideia que, na teoria, era tão feliz.

Relembro o argumento, a propósito do caso Raríssimas. E, por extensão, da evidência de que todas as organizações solidárias, ou umas quantas!, vocacionadas para apoiar carenciados, ou doentes, ou sejam quem forem as pessoas vulneráveis na sociedade, têm sido descobertas num emaranhado pouco edificante de trafulhices. Dinheiros do Estado que não chegam aos destinatários, colectas ou receitas de espectáculos, que acabam engordando presidentes, comprando-lhes roupa ou pagando-lhes automóveis e viagens. É atroz. E novo, de certa forma. Porque a desvios nos Bancos, aproveitamentos nas Câmaras ou intransparência nas relações entre a política e as finanças, já nos habituáramos. Seria muito mau, mas a nossa pouca fé nos homens portugueses levava-nos a crer na corrupção como um destino. Porém, quando se falava de suporte às vítimas, confiávamos. Estendíamos a moeda ao peditório, comprávamos o calendário para ajudar no combate ao cancro, estávamos presentes em festivais solidários, aceitávamos, à entrada dos supermercados, o saco que aviávamos com massas, arroz e lacticínios para ajudar na consoada das famílias "desfavorecidas".
O problema é que a premissa da confiança se avariou. O estado de graça desfez-se.

Bem oiço, agora, a maioria das pessoas a reagir mal à pouca-vergonha. "IPSS? Nunca mais!"  "Solidariedade? É uma corja!" "Organizações com uma Causa social? Angariações? Era o que faltava."

E é lamentável, sem dúvida, que a intenção de doar, de oferecer do que se tem, de querer saber dos outros, de proteger os aflitos, vá esmorecendo. É uma pena que a menção do espírito de generosidade faça imediatamente franzir cenhos. Que se julgue que há-de haver um secretário, ou um presidente, ou um director, a encher os bolsos e a mesa da sua família. Que querem? A corrupção é humana, sim. Os erros dos homens são um rude golpe nos projectos meritórios. Mas generalizar a suspeita, de forma a nunca mais cair no conto do vigário, também é humano. Que o mesmo é dizer: uma imperfeitíssima reacção.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

UM PUM ENTRE NAMORADOS


Certa dramática ocasião, era eu um apaixonado imberbe, inseguro e frágil, passeava nervosamente com uma recém-namorada, quando a coisa ocorreu. Um flato meu abriu caminho e fez-se ouvir. Lembro-me de que disse "oh diabo!", com uma preocupação maior do que a que a infeliz escolha de palavras pode sugerir: na verdade, senti que a existência tal como a conhecia, acabara, digamos, de dar o peido-mestre.

A minha namorada de então esteve perfeitamente à altura. Perguntou-me "que foi?" e como eu quisesse saber "não ouviste?", respondeu-me com outra pergunta: "Não ouvi o quê?" Não se apercebera, portanto. Rejubilei. Nem tudo estava perdido. Salvara-se a relação. Ainda havia milagres.

Soube, só anos mais tarde, que ela ouvira, e bem, o inconfundível flato, e que manter, a seguir, a compostura, lhe custara o esforço tremendo de conter o riso. O seu ar inocente e blasé devia-se à luta íntima para não se desfazer em gargalhadas.

Aonde me chegue a memória, Jô Soares, um comediante indispensável, foi a primeira pessoa a quem ouvi o elogio do flato na relação amorosa. Dizia ele que seria esse o maior sinal de à-vontade em casal, da confiança absoluta entre os dois: estar-se-ia com o amor da sua vida como se está consigo mesmo, sem constrangimentos ou vergonhas.

Depois, deparei muitas vezes com a mesma tese: uma relação franqueou o patamar da franqueza quando se assumiu o primeiro pum. Ora, escrevo esta crónica para, precisamente, refutar tamanho erro. Penso, pelo contrário, que a perda de pudor perante o ou a amado(a) constitui o princípio do desamor. Não significa que tenha uma relação autêntica: significa que já não quero saber. Não significa que se entrou, libertadoramente, em modo de confiança: significa que a pessoa se tornou, para mim, isso sim, um par de pantufas confortáveis ou um camisola velha.

O pudor não revela distância nem menos à-vontade. Revela cuidado. Não revela a intenção de enganar o outro, maquilhando a própria natureza, mas o gosto de agradar, de poupar o seu amor ao mau-cheiro (aos ruídos das entranhas em digestão, ao espectáculo da defecação ou de caçar macacos do nariz, por exemplo).

O despudor é a morte do desejo e do interesse. A exposição da minha animalidade é a perda do respeito. O pudor não é o fingimento. É o que me faz querer e mostrar-me com qualidade perante a pessoa que amo. Me faz querer apresentar-me em condições. Pentear-me para ela. Ou não sorver a sopa na sua presença. Não é fazer cerimónia. É considerar que o amor não justifica o desleixo. Pelo contrário.

sábado, 11 de novembro de 2017

E SE FOSSE CONSIGO?


Um militante da Juventude Centrista, cujo nome, honestamente, não recordo e não tenho paciência para ir procurar (não sendo este meu lapso, portanto, uma táctica retórica de menorização do adversário), escreveu uma crónica no Observador, aparentemente acerca do Urban, dos seguranças e do racismo, mas, na verdade, acerca de si próprio.

Este jovem inventou uma anedota que lhe pareceu engraçadíssima. Reproduzo de memória: "o karma é tramado. O Urban foi barrado por um indiano de ascendência africana." (Para quem não esteja familiarizado com esta saga, o governo de Costa encerrou a discoteca.)

Ao que parece, a piada foi mal interpretada. Não entendendo a ironia de que julga ter o usufruto exclusivo, a "esquerda", escreve ele, leu, nestas palavras, uma observação racista. E o jovem indignava-se, como se, para a esquerda, uma pessoa de direita tivesse de ser racista; tivesse de aplaudir seguranças que barram a entrada a pretos; ou que batem em pessoas; ou, pior que tudo: não pudesse ter sentido de humor; ou não fosse capaz de ironia. Porque ele tem, ele é: defende a igualdade entre os homens, até como cristão. Preocupa-se com valores e com os desfavorecidos; abomina a prepotência; tem imenso sentido de humor. (Chega a aventar que, se a sua piada fosse usada por um stand-up comedian, seria sucesso garantido). Enuncia as suas incompreendidas virtudes. Um pouco mais, e acrescentava que era de esquerda.

O problema, como vêem, é menoríssimo. O título, O que Faria se Fosse Consigo? ou algo no género, teria graça se se tratasse, também, de uma ironia. Refere-se à situação dos que foram barrados à entrada do Urban por pertencerem à etnia errada? À dos que foram esmurrados e pontapeados? Já pensou como se sentiria no seu lugar? Não. Refere-se ao seu, dele, próprio lugar. Ser tão bom, e tão incompreendido pelos biltres da esquerda. Ter tanto humor, e não perceberem. Achar uma piada fantástica e, em vez de a propagarem por essa Internet fora, insultarem-no agrestemente.

Em primeiro lugar, a piada é boa. Não é excelente, é apenas boa. Em segundo lugar, é mau que a tenham interpretado sem lhe detectar a ironia. Não é o fim do mundo, é mau. Mas, caramba! as redes sociais são o exemplo extremo de um contínuo pulular de equívocos e distorções. Não se vai ao Facebook ou ao Tweeter para pensar ou fazer pensar, a não ser em raríssimas excepções que talvez se tenham enganado no meio. Vai-se para odiar, combater ou partilhar.

Em terceiro lugar, de todos os equívocos possíveis, este era o mais previsível. Céus! Se me tivesse perguntado antes de a publicar, eu tinha-o advertido. Não porque não haja inteligência, ironia e humor à direita (consumo com grande prazer Pedro Mexia ou João Pereira Coutinho), mas porque é quase uma reacção pavloviana julgar-se que um jovem centrista que escreve uma graça alusiva à etnia do primeiro-ministro (que, obviamente, ele ataca sempre que pode), contudo não o esteja a fazer, uma vez na vida, com intuito crítico ou pejorativo. Sobretudo se não soubermos (o jovem centrista bem o sublinha agora, mas quem teria, então, de conhecer esses elementos da sua biografia?) que chamou irmãos a colegas negros, ou que foi um grande amigo de Naraná Coissoró.

À parte tudo isto, o humor e a ironia medem-se no modo como reagimos às afrontas. Uma pessoa com sentido de humor não precisava de insultar a esquerda inteira, numa crónica que redigiu tremendo, sobre as teclas, de indignação e fúria. É dar-se demasiada importância. Não se afobe. Na esquerda há gente estúpida, como na direita existe certamente quem o não seja. Em geral, nas redes sociais, são-no quase todos. A isso se reduz a sua orientação política. E deixe lá. Se a política o desiludir, terá sempre possibilidade de se dedicar ao stand-up.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

«HEY, TEATCHER!»


No seu princípio, a escola é uma ideia bem achada. Os sujeitos em formação reúnem-se entre pares, convivendo uns com os outros, ao invés de crescerem encarcerados no seio de uma família; descobrem-se mutuamente; testam, em grupos maiores ou menores, os seus sentimentos, as expectativas possíveis; e treinam as formas de relacionamento e comunicação. Em tempos bem definidos, encontram-se sob a orientação de um adulto especializado, que lhes transmite (ou acorda! ou adormece!) conhecimentos.

O problema reside em que, em vários níveis, a escola não evoluiu. Não evolui. As sociedades mudam, as culturas transformam-se, os conhecimentos tornam-se cada vez mais profundos e sofisticados, os jovens têm outros preconceitos, outros interesses e outros modos de comunicar e se relacionar, num cenário que não apreende nem se adapta e, portanto, não acompanha a vertiginosa e complexa metamorfose.

Compreendo, naturalmente, que uma escola deva, em certa medida, ser conservadora. Afinal, é ela a unidade que subjaz às alterações; a forma de ligação a um saber que dá sentido à comunidade, a uma tradição por ela assumido, até certo ponto indiscutível; a instituição que disponibiliza um legado. Mas é fácil (e cómodo) que se reduza apenas a isso, como se os jovens não precisassem senão de ser convertidos em adultos do século XIX. Professores cansados e sem chama, ou preocupados, legitimamente, com os problemas laborais de uma carreira ingrata e humilhada, ou seja, professores que são funcionários sem qualquer particular vocação, desmotivados, exasperados com os comportamentos de alunos, que não entendem e não se adequam aos velhos moldes, fazem da escola o lugar do passado e da seca, da cegueira e da surdez.

Aliás, essa é a visão de escola promovida por sucessivos ministérios. O sistema de funcionários-tipo, levados a um trabalho que deve traduzir-se em horas escrupulosas de entrada e saída, planificações, reuniões, actas, fichas-padrão e testes-padrão. É uma mentalidade que se arrepia perante a sugestão de desmontar o programa, o plano, o esquema, o horário. Que estremece ante a ideia, não de confinar os alunos mas levá-los a sair, a visitar e a conhecer. Metaforicamente, também: tudo o que não seja confiná-los a um saber concentrado nas sebentas que lhes carregam as mochilas - que é um saber ultrapassado: os alunos de ciências pensam newtoniamente, sem o menor vislumbre do que seja Física Quântica e Mecânica Quântica; em Português, a literatura foi perdendo uma importância que nunca totalmente recuperou, mais autor, menos autor; em Filosofia - que contra-senso - a «matéria» evita, com prudente minúcia, qualquer atrevimento ao espanto e ao «pensar por si próprio» (não, não se encapota, aqui, um convite à espontaneidade fácil e superficial do pensar: não se trata de uma sugestão de regresso ao "eduquês"), resumida a uma série de frases feitas e sínteses de teorias, que os alunos deverão decorar, se querem estar preparados para um exame com perguntas de escolha múltipla -, tudo o que seja estimular-lhes a curiosidade e torná-los capazes de uma crítica ao senso-comum e à falácia, lhes eduque o gosto e o bom-gosto, estará eternamente vedado à escola. Ou não passará da excepção, que alguns professores abnegados só já cada vez mais dificilmente conseguirão ainda praticar. 

Na verdade, é pena. Porque uma escola do futuro é uma possibilidade minada à partida. Porque uma escola que apresenta as obras originais, em vez de resumos e «excertos» das sebentas, é um projecto a que se corta as pernas. Porque professores que se actualizem, e façam da própria leitura e de um itinerário pessoal de visitas a exposições ou participação em conferências, uma parte essencial da sua própria educação como educadores, em lugar de inúteis, pífias, ridículas (e, em geral, pagas!) «acções de formação», não constam do que a tutela e as direcções pretendem.

Não sei - e este seria outro problema - se as tendências que registei são inevitáveis num sistema de ensino público e democrático. Se estes dois adjectivos remetem necessariamente para uma escola inferior e pobre, sem exigências que não a de formar cidadãos de acordo com os valores da polis. (Valores, esses, que fundam a normalidade transmitida e, obviamente, nunca questionada: nem mesmo em Filosofia). Não sei se formar significa, a esta luz, abranger e integrar no sistema, mais do que educar, aguçar o espírito crítico e o dom do espanto. Não sei. Pergunto.

domingo, 5 de novembro de 2017

PATHOS


Não deixo de ler José Pacheco Pereira com muito interesse e prazer. Poderá ter-me provocado certa vertigem a rapidez com que mudou de clube ideológico ao longo dos anos, mas conformei-me; ou pode ser que me sinta preconceituosamente desconfortável devido à ligação que mantém com um partido de onde nada de bom veio ao país, e em que, de resto, é controverso e mal aceite. Contudo, descobri, há muito, que, esteja ou não de acordo com ele (e estou bastas vezes, e bastas outras não estou), o seu ponto de vista é sempre um ponto de vista - não uma "opinião", não mera doxa, nunca o reflexo do que se diz, nunca uma expressão do imediato. E nunca, pelo menos detectavelmente, a conclusão conveniente a um lóbi. Maduro, independente, corajoso e subtil. Não é mais do mesmo. Em Portugal, reparem, é raríssimo.

Escrevo hoje, porém, a propósito da crónica em que se revela agastado com aquilo a que chama o excesso de pathos na política portuguesa. Como viemos de uma brutal sucessão de tragédias, concede JPP,  é até certo ponto compreensível que as pessoas se tenham sentido chocadas e emocionalmente perdidas. Mas, afirma, é tempo de virar a página, «enterrar os mortos», sarar as feridas, pensar e actuar. A imprensa - e a televisão, principalmente - deveriam afastar-se, com algum recato, do sofrimento, evitando a exploração quase estetizante e, sem dúvida, imoral, da dor. E o presidente, que assumiu, fossem quais fossem os seus móbiles, um indesmentível papel na tranquilização de populações que sofreram estes acontecimentos pungentes, desgastadas que vinham já de um duro e longo período de austeridade, que as habituara a desconfiar do Poder, bem! o presidente teria agora de não exagerar - ou seja: precisaria de renunciar ao advento, oferecido pelo seu exemplo, de um «reino dos afectos» que se tornasse modelo e guia para a política e para os políticos. Um reino dos afectos tenderia sempre à demagogia e ao populismo; um reino dos afectos descentraria necessariamente as atenções do que é essencial - sendo o essencial a discussão, as decisões, os actos, as medidas.

Por que razão discordo de uma argumentação tão ponderada e razoável? Porque contém, na sua raiz, sob o nome genérico de pathos, que, aliás, JPP traduz muito discutivelmente por emoção, duas modalidades completamente distintas, e até, em certa medida, opostas: uma é a expressão primitiva, espontânea, imediata do sofrimento. (É a que se revela sempre explorável pelos media, no exercício sado-masoquista, despudorado e gratuito, de mergulho nas lágrimas, nos gritos, nas formas tremendas da dor). Outro relevaria antes da inteligência emocional. Numa palavra, a sensibilidade. Ora a sensibilidade, a empatia, a compaixão, a noção do valor e do significado do sofrimento, deveriam, sim, ser modelos e guias da política e dos políticos.

O inverso da sensibilidade é, aliás, o que faz pessoas em cargos de responsabilidade, não só decidir, muitas vezes, quase sempre, como se a tomada de decisão pudesse limitar-se a um cálculo frio e distanciado, mas a dizer a frase errada no momento errado; a verdade, porventura, mas a verdade errada (no tempo, na forma), de um computador ou de um robot. Pedro Passos Coelho brindou-nos com um curso de tudo quanto se não deve fazer ou se não deve ser nesse campo. Cavaco Silva também. António Costa tem dias. Mas, fundamentalmente, Marcelo Rebelo de Sousa mostra essa percepção e essa capacidade, com a qual devíamos aprender. É parte do que lhe cabe fazer. Pode fatigar-nos, ou parecer-nos hipócrita, ou demasiado fácil. Observo que principia a irritar sectores cada vez mais vastos. Até porque se teme, por outro lado, que a comparação prejudique o primeiro-ministro. Ora António Costa, sublinha JPP, deveria ser um homem do logos, não do pathos. Todos os ministros. Todos os governantes.

Penso, pelo contrário, que o logos deve estar saturado em pathos. Não por preocupação eleitoralista, evidentemente, mas porque um político profundo é um sujeito completo. A sensibilidade não se encomenda nem se finge. Daríamos rapidamente pelo logro. E seria pior a emenda do que o soneto. Ou existe ou não existe. A sensibilidade e o sentimento residem no centro de uma governação profunda, que se não esgota nas ideias.
 Não se trata de ter de carpir mágoas colectivas ao pé das pessoas, entre beijos e abraços. Mas, em última análise, o que conta é a compaixão - e não ter pudor de mostrá-la quando as pessoas precisam de a ver e de a ouvir. E de a sentir.


sexta-feira, 3 de novembro de 2017

FILOSOFIA POLÍTICA


Releio, num ensaio antigo de Allan Bloom, a sua resposta à pergunta "Como deveria ser educada a próxima geração de filósofos políticos?", que o próprio Bloom, aliás, converte nesta outra pergunta: "Como deverá a próxima geração de professores de filosofia política ser educada?"

E no que afirma o Autor, reconheço uma tese que me parece tão certeira como simples, mas, no confronto com a realidade, só poderá arrastar-nos para o pessimismo. O segredo residiria na leitura dos textos políticos. No conhecimento dos clássicos, de Sócrates (isto é, de Platão) aos contemporâneos, e numa contínua discussão com todos eles, através da qual procuraríamos, fundamentalmente, "a sabedoria acerca da melhor forma de viver, do bem mais vasto, ou da justiça e do melhor dos regimes."

De certo modo, argumenta Bloom, esta busca pressuporia a existência do bem e a nossa capacidade para o reconhecer racionalmente. E no entanto, duas correntes dominantes do nosso tempo, o positivismo e o historicismo, negam essa possibilidade - ou, até, a sua conveniência.

Por outro lado, os homens que se dedicam, hoje, à política, são, em geral, o mais distante possível de filósofos políticos. Desejam ser apenas "políticos": partem unicamente do seu próprio presente, treinados numa luta estritamente ideológica, e nutrindo, pelo exercício teórico, ou pelas ideias dos pensadores do passado, um desprezo e uma ignorância que chegam a ser sublimes.

Falo, de resto, dos políticos em geral, da Direita à Esquerda. Se os primeiros raramente vão além, quando aí sequer chegam, de reivindicar um putativo legado de Sá Carneiro, os outros fixaram-se em Marx, Lenine ou Trotski. É pouco para se ter, em política, um pensamento. Afinal, recorda Bloom, mesmo os pensadores que mais inovaram e quiseram transformar, ou transformaram de facto, os que fundavam uma visão e uma acção originais, em ruptura com a tradição, faziam-no a partir de um conhecimento dessa tradição, que daria, precisamente, sentido ao seu gesto revolucionário.

Nos debates, na Assembleia ou no interior dos partidos, em televisão ou em artigos e colunas de jornal, o que testemunhamos não é tanto o pulular de ideias erradas. É a ignorância de ideias. É a ignorância dos problemas, num sentido profundo e filosófico da palavra. É a substituição de qualquer suspeita de pensamento, por princípios partidários, frases feitas, sons que se colam ao ouvido, ruído e falácias. É um meio em que se não tem consciência de tal realidade como um mal ou uma falha. Pelo contrário: as pessoas são educadas para um tal tipo de jogo e combate, e aspiram apenas a ser os maiores nesse género de luta e de retórica menores.

Começo a suspeitar que é uma forma que se implantou no mundo inteiro. Embora algo me recorde que, no capítulo da incultura política, nós, portugueses, e os políticos que, provavelmente, são os que merecemos, devemos estar muitíssimo bem colocados.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

DA HABILIDADE POLÍTICA À GRANDEZA MORAL



Tem, naturalmente, de se pensar em tudo isto. Primeiro, pareceu-me adequado que a Ministra se demitisse. Não por ser a culpada de tudo quanto aconteceu, mas por ser o rosto imediato de uma responsabilidade que a transcende: uma responsabilidade que tem, até, muitos anos, e é politicamente transversal; ora, se é justo e inovador o discurso do governo, segundo o qual importa mais encontrar soluções do que pedir cabeças, a verdade é que esta Ministra, desgastada, desacreditada aos olhos de muitos portugueses, já não tinha condições de se manter como a pessoa indicada para emendar erros, propor soluções, dinamizar órgãos e pessoas em torno do problema. Retirou-se, aliás, em termos que lhe asseguram a dignidade.

Em segundo lugar, como se explica esta concentração, quase apetecia escrever, concertação de incêndios em tamanha extensão e em tão pouco tempo? O calor anormal será, sem dúvida, um factor. A incúria, uma outra. A incúria dos próprios proprietários dos terrenos, que os eucaliptaram, os não limparam, ou os largaram ao abandono. Há muito, porém, que se fala, também, em enigmáticos interesses económicos, que nunca consegui entender. Só que mesmo isso já soa a insuficiente. Oiço e leio, pelas incredíveis redes sociais fora, a tese de uma cabala para destruir a Geringonça.

O que já seria o tipo de teoria da conspiração que me custa aceitar. Haverá coincidências suspeitas, e tornou-se indecoroso o aproveitamento que tem sido feito por uma Direita que já pouco conta: mas aproveitamento, sim, é típico da mediocridade da Direita portuguesa. Revelar-lhe qualquer culpa de outro calibre em acontecimentos que sacrificaram terras e casas, e mataram tantos seres vivos, significa descrer dos homens, olhar para as pessoas como capazes, em nome de pequenos jogos de poder, de uma abismal infâmia. Gostaria de conseguir pensar que é impossível.

Em terceiro lugar, que fazer agora, no curto prazo? Sobra, ao governo, ajustar eficiência e sensibilidade. Ser lesto a conseguir que se regresse à paz e à normalidade, indemnizando, proporcionando acompanhamento psicológico, oferecendo meios para a possível reconstituição das vidas, fazendo um inequívoco acto de contrição.
Faltam gestos de grandeza e de humildade, que restituam a confiança.

 Um gesto sem tibiezas, mais moral do que político. De assunção e reparação. Um gesto de que Marcelo, pelo que se percebe, seria capaz. Um gesto em que um Primeiro-ministro encontraria o tempo certo da sua revelação perante a adversidade. Sem dúvida que as medidas práticas, rápidas e certeiras, são o que mais importa. Mas não se esqueça a importância do psicológico e do simbólico. Nesse particular, Marcelo ensina muito do que se deve fazer, tal como Passos Coelho ensinou, desastrosamente, quase tudo o que se não deve fazer. António Costa é um político hábil. Todos o reconhecem. Aqui e agora, porém, não basta. Será capaz de descobrir, em si, o lado de que o país carece?

sábado, 14 de outubro de 2017

NARRATIVAS


Quero principiar por agradecer ao Eng. Sócrates a reintrodução do termo "narrativa", com o sentido que, aqui, abundantemente empregarei, e que tão conveniente se me mostrará.
Ironizo, é claro. Mas, ainda assim, bastaria este agradecimento inicial para que muita gente desatasse a criticar-me a pretexto das alegadas malfeitorias de Sócrates. Como se a coincidência com ele no uso de um termo, por um inevitável efeito de contaminação, fizesse de mim, necessariamente, um "socrático".

A questão é, neste caso, num reflexo invertido, a mesma: que uma posição seja abusivamente aproveitada por indesejáveis, que lá terão as suas motivações, não nos ensina rigorosamente nada acerca da justeza dessa posição. Se eu dissesse que a Madeira é uma ilha e, porventura, o espírito de Salazar viesse dar-me razão, esse dispensável apoio não me tornaria fascista. Tudo isto a propósito de a manifestação contra a estátua de Vieira ter sido impedida por um bando de skinheads, esses leitores profundos, esses vieiristas confessos. A partir deste momento, pareceria mais difícil amarmos Vieira, a sua prosa, até a sua estátua, sem que nos confundissem com um skinhead.

Visto assim, percebe-se depressa o carácter falacioso do argumento. Arrumado este equívoco, aparentemente menor, mas que tem sido por demais utilizado, o que está verdadeiramente em questão? Ergue-se, no Chiado, uma estátua a Padre António Vieira. Há indiozinhos a seus pés. A cruz erguida em sua mão. Fizeram-se discursos que não ouvi (do Presidente da Câmara, o da República), mas dou de barato que possam ter sido maioritariamente infelizes.

Que simboliza uma estátua a Padre António Vieira, em plena Lisboa, na verdade adequadamente próxima da igreja onde ele pregou? Parece-me claro. Simboliza a homenagem de um país, sim, em 2017, a um escritor que honra a Língua portuguesa, de que foi um dos grandes cultores (o insuspeito Mário de Carvalho considera-o o maior escritor português de todos os tempos, o que pode discutir-se, mas não seria pequena coisa) e um dos retóricos mais estimulantes na História da humanidade. Se isso e o facto de ter pregado a igualdade dos homens, contra a visão do regime e a da ordem religiosa de que fazia parte, não justificam que a estátua não seja, em 2017, um anacronismo, não sei o que justificaria.

Ver, nela, o símbolo do louvor de um "esclavagismo selectivo", ou a apologia da pretensa "excepcionalidade do luso-colonialismo", só pode advir de uma ideia, lamento dizê-lo, um tanto complexada e paranóica. É a criação de uma narrativa disruptora, que passa (tem passado) facilmente por anti-Portugal. Uma coisa é desmistificar. Outra é não contextualizar.

Parecendo que não, esta questão é um instrumento que tem, também, muitas cordas por onde tocar. Argumentam, alguns, que a época não deve ser tomada como uma desculpa. Que, se o fosse, não poderíamos estudar criticamente nenhuma ideia, nenhum movimento, nenhuma personagem pretéritos, presos de um relativismo histórico, incapaz
de juízo e critério morais sobre o passado. Exemplificam com os odiosos casos da Santa Inquisição ou de Hitler, e da impossibilidade relativista de sobre os seus actos nos pronunciarmos eticamente. São, é evidente, objecções baseadas em analogias superficiais e perigosas.

O relativismo não critica, porque considera todos os valores igualmente respeitáveis em função de condições específicas, de lugar e de época. Não sou um relativista. Mas, no outro extremo, o procedimento consistiria em focar, apenas, os pontos que convêm para, a partir deles, se constituir uma narrativa moral, crítica, do século XXI, sobre as figuras da História. A esta luz, não há homens de época, pensando, mesmo quando para além do seu tempo, segundo a lógica do seu tempo.

Podemos pedir contas a Aristóteles (sem o qual não existiria, porventura, o ímpeto inicial para a maioria das pesquisas científicas tal como as delimitamos hoje), por haver feito a apologia da escravatura. E proscrevê-lo. Ou a John Locke, pela mesma defesa do esclavagismo. Sendo que o que faz sentido, penso eu, é compreendê-lo como um dos maiores pensadores da tolerância, da liberdade, e um dos pilares da política como teoria e acção reflectida. Sem deixar de lamentar a sua cegueira, que é a de todo um tempo.

No meio desta discussão, usam-se grandes etiquetas para colar aos oponentes, e aponta-se o dedo a qualquer narrativa diferente da própria. O  desacordo, este desacordo, é sempre catalogado como afim do discurso dos Senhores, dos colonialistas, dos brancos. Não há meio-termo nem subtilezas. A ideia-chave é, por parte dos detractores de Vieira, a de que aqueles que o não criticam estão a ser cúmplices de um passado ignominioso, pelo qual Portugal deveria pedir desculpas. E sacode-se tristemente a cabeça: afinal, concluem alguns, esta cumplicidade seria transversal a muitos portugueses, de esquerda ou direita, que não foram capazes da fazer a sua desintoxicação mental.

E tudo isto é um pouco pequenino, complexado e ressentido. Tudo isto traduz, no plano simbólico, apenas uma luta pela inversão de poderes. A exigência de um pedido de desculpas por parte de Portugal significaria isto: Não é verdade que queiramos a igualdade. Os nossos antepassados foram vítimas dos vossos antepassados. Seremos sempre descendentes das vítimas, e o lugar que vos compete terá de ser, para sempre, o da culpa e o do ressarcimento. Nenhum dos vossos antepassados tem qualquer direito ao louvor e à admiração. Elogiá-lo é pactuar com o crime.

domingo, 8 de outubro de 2017

"ESCRAVAGISMO SELETIVO"



Evidentemente, onde vigore a liberdade de expressão, poderemos pensar de forma estranha, e apresentar as nossas ideias;  alinhavar os argumentos; partilhá-los, criar movimentos de massas em torno dos princípios que desejaríamos que fossem seguidos. Em última análise, o "estranho" é apenas o inabitual, o ainda não testado, mas quem sabe se a verdade do futuro.

Em dado ponto dos movimentos no palco do meu país, contudo, pergunto-me o que leva pessoas, ou grupos de pessoas, a defender ideias não apenas estranhas, mas tão incredivelmente aberrantes que nada senão a ignorância justifica, e a proclamá-las em voz alta, e a manifestar-se em nome delas.

Uma concentração contra a estátua do Padre António Vieira vem de que obscuras forças de esquerda? Com que fito? Por que razão, sinceramente? Rever a História portuguesa? Desmistificá-la? Expurgá-la de falsos heróis? Criar atrito? Fazer de uma estátua a uma figura cuja obra é ainda estudada - e justamente -, uma "causa fracturante"?

Quem leu Padre António Vieira sabe, pelo menos, duas coisas: que a sua escrita é, por si só, uma lição brilhante de retórica e do esplendor da língua portuguesa; e que a sua argumentação segue sempre a linha evangélica da igualdade de todos os homens, fossem brancos, pretos ou índios. Mas, repito, era preciso tê-lo lido.
Sendo uma figura de uma época, de uma ordem religiosa, e de um Império, cuja grandiosidade, claro, enalteceu, Vieira foi, nessa época, entre os jesuítas, e nesse império, uma voz moderna, progressiva, ensinando e pregando precisamente o valor de todos os homens e da emancipação.

Querer reduzi-lo a um "escravagista seletivo" (SIC), ao ponta-de-lança de uma igreja, que se quer atacar, ou de um imperialismo que liquidou sistematicamente os povos indígenas, é, no mínimo, não ter lido ou não ter compreendido - nem Vieira, nem os seus opositores, à época; é ter da História uma visão tacanha, ao nível, já agora, do Acordo Ortográfico no qual os manifestantes redigem os seus manifestos e anúncios.

Dir-me-ão: Mau! Que tem o Acordo Ortográfico que ver com o resto?
Respondo: incluem-se ambos, o Acordo e a manifestação anti-Vieira, objectivamente, numa mesma tendência para a simplificação e para o empobrecimento, numa mesma cegueira que arrasa o que não compreende, num movimento veloz para a supressão de singularidades mais complexas, mais ricas, mais "difíceis", seja na História, seja na Língua, a caminho de um Reino dos Simples. Portanto, que Vieira tenha sido um grande, grande, grande cultor da Língua Portuguesa é, de tudo, o que menos lhes interessa. O que nada lhes diz.

Esta manifestação não é de esquerda nem é de direita. A imbecilidade só casualmente ocupa um território político. É sempre, no fundo, o espírito ressentido da mediocridade a rever o que sempre o transcendeu. É apenas o esforço do nivelamento por baixo.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

LER, TER LIDO, RELER


Para um leitor obsessivo, como eu próprio, poucos prazeres se equiparam ao de estar em plena navegação por um livro sobre que tínhamos estimulantes expectativas. Desde as primeiras linhas, quando Autor e livro se encontram ainda em estado de Graça, sentimos que penetrámos, não apenas no mundo ficcional em que habitam aquelas personagens, mas no âmago do nosso interesse, como se, ler, fosse o rosto e fosse o corpo desse interesse; como se a história que nos vamos contando a nós mesmos, página após página, fosse a realização de um desejo, mas uma realização que o não suprime, o não extingue, antes o mantém ao mesmo tempo que o sacia, na encantadora vibração contínua do acto de ler.

Por vezes, ao longo da leitura, desaceleramos: uma passagem entediante, um capítulo que não está à altura, ou que não consegue captar-nos. Ou pensamentos parasitas, que nos distraem. Pode acontecer desiludirmo-nos. Como se, afinal, o livro não fosse o que esperávamos, e, então, o desejo extingue-se, efectivamente.

Daí que "termos lido" um livro nos traga um outro tipo de prazer. A visão do todo. O romance apreendido na sua unidade. E, realmente, só depois de termos lido um romance até ao fim, poderemos ajuizar do seu valor. Com A Ciociara sucedeu assim: uma leitura que partiu numa volúpia. Capítulos que devorei numa alegria de leitor. E, a partir de certo ponto, a perda do prazer, uma habituação sem mais surpresas. Num comentário que principiei a escrever nesse momento, queixava-me de um declinar de intensidade. Preparava-me para catalogar o romance como uma decepção.

Porém, nos últimos 3, 4 capítulos, a obra reanima-se. E um incidente trágico contagia e toma conta das protagonistas, da história, do leitor. Chegamos ao fim esgotados da tensão psicológica, inconsoláveis por tudo quanto experimentámos por interposta pessoa. Na visão da obra como um todo, já não pesam os momentos de menos interesse: reavaliamo-los inconscientemente; foram necessários como vias pacientes para a preparação de um certo desfecho. A Ciociara é um grande livro de que, a meio, quase desisti. E que, como obra, classificaria, depois de lida na íntegra, como sublime. Dura e sublime.

Um terceiro tipo de prazer é o da releitura. O que se perde em inocência e descoberta, o que lhe falta em surpresa, é compensado pelo olhar advertido, sábio. É uma leitura que nos oferece o gosto do reconhecimento e da familiaridade. "Sim, cá estás tu." Nos melhores casos, oferece também a possibilidade da descoberta de pormenores e até de uma compreensão que discorda da anterior.

Tenho alguma dificuldade em reler. Mas todas as releituras que fiz introduziam um elemento inesperado, uma chave que me escapara, um ponto de vista acrescentado e aprofundador.

São três prazeres que não se dispensam mutuamente. Ler. Ter lido. Reler.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

ISALTINO


A democracia tem destas coisas. Os resultados parecem-nos sempre errados quando não seguem as nossas razões. Dir-se-ia impossível que uma maioria pudesse esolher mal, como se o saber da maioria devesse conter um elemento místico, uma indiscutível verdade.

Irritámo-nos quando uma maioria escolheu o Brexit; quando outra (ou os suficientes) elegeu Trump; ou perante a horrenda preferência do pavoroso Isaltino, com maioria absoluta, para a Câmara de Oeiras.

A pergunta, em face destes clamorosos erros de casting, terá necessariamente de ser: porque respeitamos, afinal, a democracia? Se a decisão do eleitorado não está intrinsecamente isenta de toda a insensatez e de todo o perigo, se não é um gesto mágico, superior, grávido de uma verdade absoluta, se lhe discutimos o valor, ainda que reconhecendo-lhe a validade, o que justifica essa aceitação? E porque a defendemos como o mais forte sinal da civilização e do progresso político?

Ou descarregamos, qual fardo tornado absurdo, esta veneração pela democracia como o sistema mais justo, ou sequer, nas palavras de Churchill, o pior com excepção de todos os outros, ou deixamos, no rescaldo de uma eleição, de criticar a expressão da "vontade popular" identificando-a como um sintoma "grave de cidadania" (Júdice devia querer dizer: um sinal grave de falta de cidadania), ou do terceiro-mundismo dos portugueses.

O subdesenvolvimento? Claro. Mas essas pessoas existem, não se lembravam? Há, é claro, votos menos, digamos assim, instruídos. De rurais, de idosos amedrontados, de pessoas preconceituosas, de gente que não desmonta a manipulação. Que maçada! E agora? Os seus votos não deveriam valer? Deveriam valer em menor percentagem? Quando coincidem em grande número e guindam ao poder o ladrão e o corrupto, anulamos a eleição?

Ou será que, em última análise, todos os votos significam algo? Ou seja, que não há votos estúpidos, mas votos que pedem alguma coisa, logo dizem alguma coisa, que nos passa despercebida, ou não é do nosso interesse particular? E portanto, o que se impõe é, mais do que uma crítica ou o desânimo, uma hermenêutica?

 A maioria absoluta oferecida a Isaltino é aterradora. Eu sei. Eu sei. Mas que significa ela, poças!, mais do que o baixo nível, o terceiro-mundismo, a ignorância ou a falta de educação cívica dos eleitores? Que viram os desfavorecidos (dando de barato que foram, sobretudo, estes, os culpados, como o haviam sido em Inglaterra e nos EUA)? Que lhes soou no candidato? O que perceberam, eles, que um homem venal, corrupto e inculto, soprando o sempiterno charuto, teria para lhes oferecer?

Duas coisas parecem certas: Isaltino era promessa de qualquer coisa com mais peso, para esses eleitores, do que as questões de moral e de carácter. E qualquer coisa que os outros não tinham para oferecer - ou não da mesma maneira.

sábado, 30 de setembro de 2017

VOCÊ


O escritor Mário de Carvalho, talentoso, inteligente e cordato, tem, porém, autênticas fúrias asassinas quando o tratam por você.

Você é, realmente, uma expressão desrespeitosa e descortês. Usá-la, em vez de "o senhor" (não precisa de ser "o sr. doutor", mas apenas "o senhor", ou "o Mário de Carvalho", como em: «Mas diga-me, Mário de Carvalho, o que pensa o Mário de Carvalho sobre o assunto?»), implica sempre uma desconsideração que, também a mim, consegue arrepiar bastante. Não é pior nem melhor do que tratarem-me por "ó chefe", com a ironia subentendida. É igual.

Ora Mário de Carvalho, que teve de passar, num destes dias, por um hospital (ou um centro específico de tratamento, confesso que não sou capaz de precisar), elogiava a competência, mesmo comparando internacionalmente, do modo como foi atendido, mas acrescentava, com alguma tristeza, que, muitos desses profissionais, simpáticos e eficientes, eram, todavia, da escola do você. Você para aqui, você para acolá.

Eis onde reside o ponto.

Profissionais simpáticos e competentes, dando o seu melhor por um doente que os procurou numa aflição, não estariam com certeza, intencionalmente, a desrespeitá-lo. Na mente daqueles, você não significaria um tratamento que menoriza. É natural. Ainda me lembro da estupefacção de um aluno por, uma vez, lhe ter chamado a atenção para a forma como se me dirigia. "Mas", retorquiu, não alcançando o que me incomodara, "eu disse você. Não disse tu."

Estamos perante uma questão geracional da língua portuguesa. É uma análise que respeita à pragmática. Não existe, no uso que os jovens fazem do termo, a intenção que os mais velhos acreditam identificar.
Merece a pena a luta, se o uso de uma língua inevitavelmente se metamorfoseará?

 Merece, sim. Creio que Mário de Carvalho tem razão, como argumentarei em duas linhas. E que dependerá, em última instância, unicamente dos educadores, que as gerações desconhecedoras aprendam a subtileza na diferenciação. Não por snobismo. Não pela preocupação classista com a hierarquização reflectida no tratamento.  (Só por ignorância se poderia acusar, disso, Mário de Carvalho). Mas pelo valor da cortesia; e, quanto mais não seja, porque a subtileza no emprego dos termos é sempre sinal de uma língua mais rica e complexa, capaz de carregar de cambiantes a comunicação. Enquanto a indiferenciação das palavras representa, necessariamente, um empobrecimento. Da língua. Da comunicação. Das relações.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O INTELECTUAL DE ESQUERDA


              
Um intelectual de esquerda é  um tipo em quem a ética e a cultura estão divorciadas.

     Em O Caminho para Wigan Pier, George Orwell tem um capítulo inesquecível, impiedoso na sua mordacidade, acerca do intelectual de esquerda, que no-lo apresenta segundo um padrão de que fariam parte, desde certas neuroses ideológicas, até à higiene (ou falta dela).
     O livro merece ser lido por muitas razões. Maria Filomena Mónica recomendava-o, inclusivamente, como imprescindível numa bibliografia séria da literatura para o estudante de sociologia. O capítulo sobre a Esquerda Caviar, como se lhe chama hoje, é apenas uma parte menor. Mas foi a que verdadeiramente causou dissabores ao Autor.

     A figura do intelectual de esquerda é a de alguém que não está em paz com nada. Nem com as suas origens, que abomina e mascara, nem com as classes a que se devota, porque a sua relação com os "trabalhadores" contém necessariamente tensões e equívocos, fascínios e desprezos (mútuos) que não facilitam a comunicação.

     O intelectual de esquerda é sempre mais radical do que o operário vulgar. Deseja a mudança profunda e súbita. O proletariado ambiciona poder de compra, enquanto o intelectual é um crítico feroz da sociedade de consumo. Sabe perfeitamente que esta seria o equivalente contemporâneo à caverna, sobre que escrevia Platão, na sua famosa alegoria. Apenas sombras. Apenas ilusões. Ora os "trabalhadores" não pretendem senão poder entrar nessa caverna, como se fosse um clube. É sempre numa vida melhor que pensam. Não porque não aspirem à dignidade. Mas porque, para eles, a dignidade se mede sempre em bens possuídos e ostentáveis.

     Um operário ou um camponês odeiam os livros ou os filmes que os intelectuais de esquerda veneram. O "povo trabalhador" não frui Godard nem ri com o humor neurótico de Woody Allen. Nunca pagaria para ver Bergman ou para ler os neo-realistas. Muito menos Brecht, de quem também não sou o adepto-mor. Os "trabalhadores" prefeririam MPB (não, não Música Popular Brasileira, mas música popular brejeira) a fosse que música erudita, revolucionária, avant-garde.

     A tal ponto Lenine o sabia, que, para ele, fluente em alemão, francês, inglês, leitor de Hegel ou de Marx e Engels na língua original, ou seja, um autêntico intelectual, nunca houve dúvidas sobre que tinham de ser estes a decidir o que era melhor para o povo. Muito antes dele, Platão já tivera a mesma convicção. Os pobres não são os melhores juízes dos seus próprios interesses. Como as crianças, precisam de um pai que pense por eles.

     A esquerda aprendeu à sua custa. A democracia impôs-se. Para o bem e para o mal, aliás. (Deu-nos Trump; deu-nos o Brexit; deu-nos Isaltino). E os intelectuais democratizaram-se. Talvez não tenham tido outro remédio. Já sabem escutar. Ou fingem melhor. Ainda "explicam" os resultados segundo os seus modelos teóricos. Mas não insistem em que todos devem ler livros de filosofia ou apreciar teatro. Não é que os "trabalhadores" não conseguissem por causa de qualquer inferioridade intrínseca. É que os intelectuais perceberam, por fim, que não lhes cabe ditar do que devem as pessoas gostar. E que não se educa ninguém à força.




quinta-feira, 28 de setembro de 2017

AUMENTOS QUE SUBTRAEM


Sou, desde o instante da sua criação, um entusiasta da Geringonça. Numa união das esquerdas, vejo uma bússola que aponta o que não pode senão ser a possibilidade que ética e politicamente mais me toca, que é a de proteger os mais vulneráveis numa sociedade injusta, desigual, em permanente guerra civil.

Mas o PS, há que confessá-lo, é um partido ambíguo. Tem um problema, e sente-se pressionado de todos os lados. Internamente, existem facções que nunca digeriram a aliança e que  - apesar de momentaneamente tranquilas, porque as coisas têm corrido bem ao Costa - estão à escuta, silenciosa e tensamente, aguardando, prontas para a hora da punhalada.
A coligação é dura de gerir. Não duvido. BE e PC, que, para mais, não conversam entre si, são pressões atentas, exigentes e com pouca paciência.
Por fim, mais do que a oposição - a oposição está morta - temos Bruxelas e as empresas de rating.

É um equilíbrio impossível. Se não se atende aos partidos-companheiros, não se avança, pensa o Primeiro-ministro. Mas se ignorarmos Bruxelas e as as suas metas ou as companhias que nos atiram ao lixo, reflecte ele, não há confiança dos mercados, nem, portanto, investimento.

De forma que percebemos que manter os pratos todos  a girar, ao mesmo tempo, sobre as varas (corre, Centeno, que aquele está quase a cair; olha o outro, ali, a descair...) exige alguns truques, algumas distorções, algumas manigâncias. Mesmo na companhia de um Presidente que não põe obstáculos, e é um apoio extraordinário, desdramatizando, reconciliando e ajudando a compreender razões, não poderia não se recorrer a alguma engenharia financeira que ultrapassa tudo o que é compreensível.

Quando é que essa engenharia começa a cheirar mal? Eu vos digo. No ponto em que se introduz um elemento de má-fé. No ponto em que se falseia o contrato social. Quando descobrimos que nos estão a comer.

Dirão: Já viram? Estava do lado da Geringonça até começarem a tocar no seu dinheirinho. Mas não. Repito. Venham buscar o meu dinheiro, que eu sou generoso. Peçam-mo. O mal está em enganarem-me. Falarem por exemplo de reposição, quando, o que repuseram, automaticamente me fez mudar de escalão, no IRS e, ergo, receber menos do que recebia sem a dita. Não é um engano. Nem é não terem medido as consequências. É desonesto. Ponto. Eu não gosto. Ponto. Dispenso a reposição, obviamente.

Repete-se agora a esperteza. Aumentaram-me uns cêntimos no subsídio de refeição - uns cêntimos, literalmente - para, uma vez mais, me mudarem de escalão e me virem buscar mais uma maquia. Ou seja: aumentarem-me para, sob esse nome, sob essa máscara, diminuirem de facto o meu ordenado.

É este lado do PS que me irrita. Esta desonestidade nos nomes, para aproveitar de uns (a classe média, especificamente), continuando a sorrir para os parceiros.

Como os miúdos que, na hora da foto, mantêm a postura digna e inocente, enquanto, secretamente, erguem, com dois dedos sobre a cabeça do vizinho do lado, o símbolo de um par de chifres.
Mas o PS não tem a mesma graça. Neste caso, não é bem uma garotice. É uma vigarice.

domingo, 17 de setembro de 2017

TAUROMAQUIA


Desculpem autocitar-me, mas vem a propósito.
Numa página de veganos e vegetarianos, alguém reproduziu um artigo em que um idiota, não há tolerância que me faça atenuar o adjectivo, visava provar cientificamente que os touros não sentem dor, porque segregam uma hormona que, e blá-blá-blá. Os frequentadores da página reagiram com indignação. Num dos vários comentários, uma senhora escreveu: "Qualquer dia a ciência consegue provar que esta besta não tem cérebro." Alguma coisa no género. E eu então, inspiradíssimo: "Mas pelo menos, nesse caso, seria verdade. Eu não gosto de insultar, porém está cientificamente provado que os broncos não sentem os insultos, porque segregam uma hormona que os auto-anestesia e faz que nem compreendam de que se trata."

Este uso da linguagem científica em nome dos interesses egoístas tem qualquer coisa de aterrador. Seria muito fácil "provar" cientificamente que as raposas têm uma hormona desportiva que as faz apreciar vivamente serem perseguidas por matilhas de cães e homens de cartola ou bonezinho e jaqueta vermelha, a cavalo, ao som de uma trompa, ou que diabo é aquilo. Ou que, na gazela que recebe um tiro, dispara a adrenalina que a leva a sentir a morte como um orgasmo. Tanto faz!

Ainda que fosse verdade, e não é, valeria tanto como defender-se que certos seres humanos (por exemplo os halterofilistas) são imunes à dor, pelo que seria aceitável um espectáculo em que lhes espetassem bandarilhas. O que está em causa é a barbaridade de se atirar com um animal para uma arena onde, entre bravos e olés de bandos de sádicos, o vão acossar, provocar, assustar, espetar.

No momento em que o projecto de elevar a cultura tauromáquica a património imaterial da humanidade ganhou uma primeira vitória, torna-se fundamental recordar que, neste ponto, todo o relativismo soçobra. Não há ciência nem ética alternativa que tenham legitimidade para sustentar uma cultura do sofrimento de um ser vivo. Em nome de nada. Nem da tradição, nem da beleza de um homem em calça justa, ou da coragem de um grupo de saloios prontos a agarrar o touro. Ou da nobreza de cavaleiros, vestidos como o Marquês do Pombal, a investir e a espetar. Ou de empregos, ou do que vos ocorra. Nada justifica a barbaridade, o terror, a falta de empatia, a degradação.

E não me falem de Hemingway. Isto porque, entre os aficcionadoas com algumas letras, há sempre alguém que nos apedreja com o exemplo de Hemingway. Mas um grande escritor não é um homem infalível nem um modelo ético. É apenas um grande escritor, que continuarei a ler. Posso espantar-me dessa horrenda falha na personalidade de um homem culto, sensível, amante de gatos. Mas não me falem dele, nem me digam que há, na tauromaquia, um espírito em que nunca entrei e não consigo compreender. É mais simples do que isso. Não existe, no bullying, nada a compreender. No bullying, por ironiade um touro, mais assustado do que bravo, mais desnorteado do que enraivecido, tudo o que vejo é uma terrível besta selvagem: o homem.


sábado, 16 de setembro de 2017

UMA IDEOLOGIA DA RABUGICE


O PCP já existia quando os outros partidos portugueses nem em pensamento eram sequer embriões. A história do Partido Comunista é, naturalmente, a de coragens e cobardias, esperanças e traições, sobre o vector de uma absoluta coerência ideológica.

Sabíamos sempre as razões do PC: podíamos discordar, mas elas eram racionalmente reconstituíveis a partir de algumas bíblias, Marx, Lenine, Staline e, ao longo do tempo, a intransigente interpretação dos factos segundo a estratégia e as tácticas do PCUS.

Como a União Soviética já não existe e cada partido comunista, em cada país, sofreu as suas próprias mutações internas, assistimos a imprevisíveis refazer de alianças, escolhas, proscrições. Partidos que ensaiavam terceiras vias, cuidavam do seu "aggiornamento", se modernizavam, abandonando Lenine, reformulando Marx. Em todo o lado houve maquilhagens, discussões e bater de porta. Todos tiveram as suas Zita Seabra.

Deve ser difícil. A perda de um pai. E os primeiros passos da autonomia que a orfandade requer, mesmo quando já temos 30, 40, 50 anos. A quem peço agora boleia, mesada, conselho? Quem me ralha? Quem me assegura que conseguirei?

No PCP, as sucessivas reformulações tornaram-no, curiosamente, num partido mais dependente de ciúmes, invejas, ressentimentos, hábitos e manias, do que de qualquer coerência ideológica. Dois exemplos muito simples: tendo a visão de integrar a benfazeja Geringonça, não é verdade que o seu comportamento relativamente ao BE soa, muitas vezes, ao de Caim - o irmão invejoso e ciumento, capaz de um irreparável crime num instante de irreflexão e raiva, para que o "puto" não lhe passe à frente ou porque se sentiu preterido e desrespeitado?

Ou a sua posição a propósito da Coreia de Kim. Que há nesta dificuldade em reconhecer que se trata de tudo menos de uma democracia, senão uma espécie de caturrice de velho incapaz de mudar e perceber?

Em pequenos tiques e grandes tiques o PCP revela-se um partido fechado e idoso.
Na Geringonça, teria uma oportunidade única para reaprender a importância e o preço da unidade.
E do que verdadeiramente se mantém essencial para qualquer partido de esquerda, em qualquer parte do mundo e do tempo.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

PLÁGIOS


Num programa radiofónico, Nilton ofereceu-nos a sua única piada de jeito em muitos anos, talvez até de toda a sua vida como comediante. A propósito de Tony Carreira e do alegado plágio de 11 canções, comentava Nilton (cito de memória): "pior do que o plágio, o que me preocupa é que haja no mundo mais onze tipos a fazer música desta!"

Em música, a identificação de um plágio obedece a critérios rigorosíssimos. Não sei quantos segundos de uma melodia similar dificilmente seriam considerados coincidência. Embora possamos dizer das coincidências: pero que las hay, las hay. Ou outra coisa ainda, para além da coincidência, que é o compositor não estar nunca inteiramente consciente de como certas influências o estimularam ou marcaram em segredo.
Seja como for, se me pusesse a falar disso (a partir de fontes fidedignas) explicaria como algumas das mais belas canções portuguesas plagiam - ou coincidem com - antigas e perfeitas melodias, sem que se dê por isso, até porque, para tanto, seria preciso conhecer os originais, os quais têm já alguns anos: os Aznavour, por exemplo. E por esta soez insinuação me fico. Cala-te boca.

A minha primeira reacção é pensar que, a um certo nível de ausência de qualidade, o plágio não devia incomodar-nos. É realmente importante que ao obrar, na sanita, esteja a copiar obra alheia? Ui. Apercebo-me rapidamente da ofensa contida na minha analogia. Hoje não estou bem. Apresso-me, pois, a pedir perdão ao cocó por estar a compará-lo com a música de Tony Carreira.

Entretanto, lembro-me de que nem é a qualidade que está em causa. As canções de Carreira & Landum podem não ser Lennon & McCartney (a menos, obviamente, que os copiassem, mas para isso careceriam de algum gosto musical), no entanto também movem multidões, gritos, beijos, perseguições, sutiãs atirados para o palco quando cantadas ao vivo. E, mais que tudo: dinheiro. É natural que as companhias discográficas se insurjam por descobrir que esse dinheiro não é para elas. Nem para os seus músicos, que originalmente as haviam composto. E composto com tanto esforço - que diabo! é preciso o dobro do esforço quando se tem poucochinho talento. Hão-de querer ganhar agora qualquer coisa. É natural.

É um número digno de se ver. Não perderei os desenvolvimentos. Ainda melhor do que estar nos melhores lugares para um espectáculo com Tony Carreira no Olympia.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

SALVADOR


Quando ouvi pela primeira vez a canção do Salvador, muito antes da sua feliz vitória no Eurofestival, desagradou-me de imediato. Ao contrário de tantas pessoas, que se renderam sem luta, eu combati intensamente. Aquilo tinha ar de se arrastar como uma jibóia digerindo um boi. Era demasiado Maria Guinot para meu gosto. Nem a voz do Salvador me parecia ter salvação.

À força de a escutar, porém, comecei a intuir com algum prazer a melodia sob as camisolas que a sufocavam nas lentidões de orquestra sinfónica da Emissora Nacional. Não o confessei logo. Sentia-me bem no lugar de um tipo que, contra a generalização do apoio, continuava a dizer mal. Amigas minhas, que a ouviam quase em êxtase, eram, a seguir, varadas pelo fio do meu sarcasmo.

E apesar de tudo, na noite do Eurofestival, sofri todos os minutos numa esperança que, incrédula, ia ganhando força. O Salvador soou-me, e isto é absolutamente verídico e não um mito tardio, em contraste com as canções concorrentes, de uma beleza e de uma qualidade inigualáveis. Como mais um desses portugueses de gerações que se habituaram a ser torturadas pela eurovisão como sinónimo de uma humilhante derrota, dei conta dos resultados de lágrimas nos olhos.

Fui honesto. No que escrevi de seguida, dava os parabéns ao Salvador, sublinhando sempre que vencia com uma canção de que eu nunca fora fã.

 Com o tempo, aprendi a apreciá-lo na sua qualidade de ser humano interessante e completo, culto, sensível e generoso, com uma voz capaz de voos maravilhosos e uma coragem que vai sendo rara. Vi isso, como vi a ponta de arrogância que estava a mais, ou os actos intempestivos de um humor que às vezes é mais rápido do que a própria sombra e, certamente, mais rápido do que a inteligência ou um certo sentido das conveniências. São defeitos menores. Somos todos como ele. Ou tomáramos nós.

Neste momento complicado da sua vida, em que a imprensa, como escrevia uma amiga sua, rompe, com títulos infames, o seu direito à privacidade e ao sossego, quero desejar-lhe (salvo que ele não lerá uma crónica discreta e perdida como esta) que encontre um coração à altura do seu coração. E que o já do seu até ao público seja um já muito breve.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O ÚNICO VERDADEIRO PROGRESSO



Há duas coisas em que a idade realmente não perdoa. Uma é, nos homens, a dramática escassez de cabelo no cucuruto. Outra é a radical transformação da potência da vista. Se em jovens tendíamos a ser verdadeiros super-heróis, dotados quase de visão de raio-x, a partir de um certo número de anos os olhos, de diversas maneiras, começam a ganhar preguiças que não dão jeito.

Parece, aliás, que, mercê do abuso de aplicação da vista nos écrãs dos pc e dos telemóveis, a idade em que os olhos desatam a pregar partidas de mau-gosto é cada vez menor. Meu filho descobre, aos vinte e pico, que a sua visão «já não é o que era», embora parte do problema dele seja certamente ter herdado alguns dos meus genes-toupeira. No seu caso, terá sido a dificuldade desses genes em ver o caminho, que fez, até, que chegassem tão tarde. Mas esqueçamos, então, o rapaz: tenho tantas amigas que confiavam plenamente na sua acuidade visual e, cada vez mais, dependem de uns óculos que lhes desfiguram o rosto. Já não são quem eram. E não.

Em mim, o que mudou foi que, quando usava óculos, via bem. Ao menos isso. A minha miopia assentara, mal lhe prestava atenção. Era um caixa-de-óculos tranquilo.
Porém, com estes «auxiliares visuais», como me dizia um barbeiro, os quais, sendo para ver ao longe, não interferiam no entanto na visão de proximidade, vem acontecendo há algum tempo que já não consigo ver correctamente ao pé. Ponho-os para perceber quem me chama, ao fundo de uma sala. Mas tenho de os tirar para ler um sms no telemóvel. É desconcertante. E pouco prático.

Sempre que tenho de dar aulas com óculos, recordo-me de uma imitação hilariante que, há muitos & muitos anos, um jovem professor meu, de Física, fazia de um seu colega que conhecíamos todos demasiado bem. Esse infeliz homem precisava de dois pares de óculos. Um para perto, outro para o longe. Punha o primeiro para ler o nome do aluno, ao fazer a chamada. O aluno respondia, de um vago ponto na sala, «presente». O homem olhava-o ainda com os óculos de ler. Tinha um estremecimento de surpresa. Trocava-os. Vislumbrava o aluno. Voltava para o nome seguinte, sem se lembrar de mudar de óculos. Novo arrepio de estupefacção. Trocava-os. Fulano de tal. «Presente». Estremecimento. E assim sucessivamente, ao longo da chamada dos trinta alunos da turma.

A razão por que não opto de imediato por umas lentes progressivas é simples; e estúpida: tiveram sempre má fama. Ainda ecoam histórias aberrantes no meu subconsciente, seja isso o que for. Pessoas que padeciam para se lhes adaptar. Sofriam tonturas. Caíam ridícula e estrepitosamente na escada rolante. Alucinavam, quase. Mas como, por outro lado, já não suporto o gesto de tirar e pôr consecutivamente as cangalhas, consoante mire a linha do horizonte, ou me aproxime da página de um livro, começam a faltar-me alternativas. No fundo, sim - para não falar de operações redentoras, que me devolveriam, em certa medida, os olhos da juventude, mas a que não me atrevo ainda - resta-me ganhar coragem para me adaptar a umas lentes progressivas. Bem vista a coisa, e fazendo fé no nome, deve ser o único verdadeiro progresso na vida de um tipo.  

terça-feira, 12 de setembro de 2017

SHRINKS

 

   "Metade é ciência e a outra metade é fé."
                                       Novalis


Não poderia negar que uma grande parte, mais de 50%, do que se pesquisa e afirma no campo da psicologia, seja, para resumir numa palavra, científico. Conheço várias pessoas que, acompanhadas por psicólogos especializados em diversas variantes e tipos de abordagem, foram efectivamente tranquilizadas; sustidas nas suas crises; nos seus medos; transformadas no que respeita a comportamentos desequilibrados; reintegradas na família; na comunidade; na existência. Testemunhei razoáveis índices de casos de eficácia, mais demorados uns, mais discutíveis outros, para que, apesar de tudo, não reconheça alguma credibilidade à psicologia. Embora, claro, me aflijam os psicólogos que sobremedicam. Os que encharcam em medicação. Os que mantêm pela trela. Os que alienam. Os que zombificam.

O senso-comum norte-americano, como é sabido, trata os psiquiatras, num misto de desprezo e receio, por «shrinks», ou seja,  «redutores» - ligando caricaturalmente a sua função à dos redutores de cabeça. Compreendo esse sentimento de suspeição. Nos EUA, precisamente, a psicologia apresenta-se como um assustador teatro de lutas internas, chocantes assassinatos do pai, ruidosas excomunhões e denúncias mútuas de fraude. Revela-me e narra-me um livro (por acaso muito interessante, mas extremamente parcial, e cujo título original é nada menos do que Shrinks - The Untold Story of Psychiatry), a história recalcada da omnipresença dos psicanalistas na América e do papel, segundo o autor, muito pernicioso que a sua influência teve na marcha da psiquiatria.

Mas essa história é também a história das sucessivas versões da Bíblia da psiquiatria, Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders, o «fidedigno compêndio», define-o Jeffrey Lieberman, «de todas as doenças mentais conhecidas». Ora, percebermos até que ponto o registo e a caracterização de muitas doenças mentais nesse compêndio, mais do que o resultado de pesquisa e experimentação científicas, foi o consenso de exaustivas negociações e jogos de poder entre correntes em choque, sob o escrutínio atento das esferas do politicamente correcto, abala certamente a confiança de qualquer potencial paciente.  

Houve sempre nessa luta para que se aceitassem ou recusassem determinadas descrições como evidências de "desordem mental", qualquer coisa de pouco sério e de pouco científico, associada a interpretações e dependente da conveniência em manter certas categorias de "doentes". O que é exactamente uma "neurose", por exemplo? Uma desordem ambígua, vagamente diagnosticável? Uma ficção? O certo é que os psicanalistas perceberam que seria mau para o seu negócio excluir essa identificação. Sem neuróticos, quem teriam para tratar? E a homossexualidade, deveria ser registada como uma perturbação? Quantos argumentos, e preconceitos, em torno dessa pergunta.

Depois, temos, por exemplo os psicopatas. O que é um psicopata para além do que vemos nos blockbusters? Como o reconhecemos? E, se o identificamos, podemos curá-lo? Ou estamos a falar de alguém com um cérebro de tipo diferente e, portanto, liminarmente incurável? Seja como for, pesquisem por uma lista designada por "teste Hare" para reconhecer um psicopata. Que vago. Que ambíguo. Como nos poderíamos todos, de um modo ou de outro, reconhecer aí.

Como se todas estas dúvidas não bastassem, tropeçamos quotidianamente numa sub-categoria da fauna, que é o "psicólogo português". Ouvimos os disparates do Dr. Quintino, na rádio, na tv e em cassete, ou pelo menos em livro, ou daquele senhor de voz mansa, com truques para tudo, o Dr. Sá, ou as certezas do Dr. Strecht, e mesmo as do Dr. Daniel Sampaio, esse guru, esse Mestre Yoda da Arte, e metemos a marcha-atrás.

Entre nós, cada vez mais, parece que todos poderíamos ser políticos, treinadores e psicólogos. Não sei. Mas olhando em volta, desconfio que sim.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

LA RENTRÉE


Aprendíamos, naquele manual de francês que falava da família Dupont e de seu cão Patapouf, que o dia de regresso às aulas era apenas "La rentrée".

Seria com certeza um livro muito bem concebido se, decorridos estes séculos e estas vidas, ainda me lembro tão bem de tudo isto. A menina não se chamava Nicole? Julgo que sim. Comparem-no (ou ao de filosofia, de que já falei em outra crónica, e marcou decisivamente a escolha do meu percurso académico) com os manuais que, tanto tempo de revoluções pedagógicas e didácticas volvido, são, hoje, os dos nossos filhos, fugazes, esquecíveis, impotentes para orientar vidas, iguais uns aos outros (com belas excepções, na verdade) e percebemos que se tendeu a perder uma sabedoria essencial.

Os jovens, porém, não mudaram em um aspecto. Pelo menos, à superfície: continuam a encarar o regresso como nós o fazíamos. Um idêntico misto de temor pelas novidades, novas matérias, outros professores, e o desejo de reencontrar os amigos que as férias haviam levado para longe. Uma agitação interior, uma febre de primeiros beijos e abraços, de conversas e risos de intervalo. Mudaram em outro, porém. A ansiedade por exibir: o telemóvel, que não existia para nós, os ténis, que no nosso tempo eram simples Sanjo e não os obrigatórios Nike ou Adidas, a mochila, que não ostentava marca alguma; e, claro, não mudaram na ânsia de estrear cadernos e lápis.

Antes, o "material para a rentrée" não tinha sido, ainda, elevado a objecto de um negócio maior na sociedade de consumo. A partir de certo momento, os pais, coitados, começaram a ver-se arrastados nessa tempestade consumista que também parece dever-se às alterações climáticas. A ideia de que os filhos não se preparem para o recomeço com roupa nova e novos apetrechos tecnológicos que, aliás, serão abusivamente usados durante as aulas, tornou-se um sinal dos tempos. Uma fúria gastadora. E um pesadelo.

sábado, 2 de setembro de 2017

YOUTUBERS


A reboque de pioneiros na discussão deste tema, como Nuno Markl, que lhe dedica uma crónica muito bem esgalhada, sob a forma da carta de um pai preocupado com o que o filho segue na net, deixem-me pegar hoje, também eu, na questão dos YouTubers.

Os adolescentes e os pré-adolescentes estão completamente vidrados nestes jovens trintões que fizeram do uso do YouTube a sua profissão. Em primeiro lugar, o conceito nada tem, em si mesmo, de arrepiante ou maligno. Pessoas que vêem nos YouTubers um bando de tipos frívolos e sem um autêntico trabalho são pessoas com um preconceito similar aos dos nossos avós, quando diziam que ser-se actor ou pintor era preferir, a um emprego sério e estável, o mundo da decadência moral e social. Markl lembra-nos isso nesmo, aliás. O irresistível fascínio que mostra, sob a crítica construtiva e ingénua que lhes dirige, é o de alguém que gostaria de haver tido, no seu tempo, a possibilidade de recorrer a esse poderoso instrumento. Os YouTubers não são tipos frívolos sem um trabalho sério, são tipos frívolos com uma cena que devemos levar a sério.

O problema é, pois, o da linguagem. Eventualmente, o da visão do mundo subjacente ao tipo de humor praticado, sobretudo porque quem os segue são os miúdos mais novos, logo desde os 8 ou 9 anos.

A questão é que nem a banalização desta linguagem nem a deste humor são uma invenção dos YouTubers. Para sermos rigorosos, tais formas já nos tinham entrado na própria televisão, há muitos anos, pela mão de Teresa Guilherme. Os Big Brothers, as Casas dos Segredos ou esta outra casa que agora aí está, com os seus energúmenos despidos de igual, os seus cortes de cabelo iguais, as suas tatuagens e piercings, os seus amores e desamores, os seus palavrões 24 horas por dia, constituem o verdadeiro modelo de todos estes avatares.

O óbvio relaxamento dos costumes, que sempre fez parte de uma certa esfera e de uma certa fase da vida dos jovens (na universidade, entre bebedeiras e cenas tristes, ou na tropa) tornou-se "normal" a partir do momento em que a televisão lhe abriu as portas. Tornou-se aceitável, na mente dos jovens, desde que a tv mostrou o primeiro grunho a dizer "f...-se!" ou "vai pó c...!", em horário nobre.

O Facebook, o YouTube, o Tweeter, ou quaisquer que sejam os instrumentos das redes sociais, amplificam esta legitimação que fora feita pela tv. E como estes meios representam, hoje, o habitat natural de todos os jovens, expandiram-se uma linguagem, um humor, uma visão, uma subcultura (de que faz parte uma submoral), que não só lhes devieram familiares, como, insisto, normais: formam verdadeiramente o seu modo de estar, com uma força e uma abrangência que dificilmente poderemos deter ou inverter.

Curtir Quim Barreiros, cultivar o bullying como uma forma de humor ou de expressão da raiva, arrasar um hotel numa divertida viagem de finalistas a Espanha, não ver nada de profundamente errado numa cena de violação de uma caloira, num autocarro, fazem parte da mesma subcultura. Os jovens sempre passaram por experiências análogas. Eram ilhas no tempo e no espaço. A rede, hoje, tornou-os na totalidade da sua experiência. Modelo de relação e comunicação. A rede fez do seu mundo um campus. A rede fez do seu mundo uma caserna.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A CRÓNICA



Nunca tinha escrito crónicas, embora sempre as lesse com gosto. Trata-se de, no fluxo do tempo, cristalizar um instante. Não para a posteridade (embora algumas crónicas a merecessem). Pelo contrário: elabora-se tão-só um registo que possamos ler, gozar e esquecer, porque a sua substância deve ser a do próprio tempo, na sua volatilidade, na sua leveza, no seu desenraizamento.

O parágrafo anterior não diminui a crónica. Nada do que escrevi pode ser lido como um atestado de menoridade. Ela é uma forma muito específica e complexa, para a qual nem todos terão talento, começando, provavelmente (que é o meu eufemismo preferido para: "de certeza") por mim próprio.

O cronista saltita de uma ideia política, num texto, para uma sobre futebol, em outro. De uma emoção para uma teoria. De uma indignação para um fascínio. Fala de um livro que leu ou de um filme que viu. De filosofia ou de memórias de infância. O que quer que, num momento, possa formar uma certa figura passageira, sob o brilho do sol, constituirá o seu registo do momento. Não é maravilhoso? Como numa mandala,  o empenhamento criativo e estético fará nascer qualquer coisa, que, depois, deliberadamente, será soprada e desaparecerá.

Na língua portuguesa se exprimem alguns dos cronistas que mais admiro, o que é um eufemismo, desta vez para: invejo. Luís Fernando Veríssimo e Ricardo Araújo Pereira fizeram do humor na crónica uma arte suprema. António Manuel Pina era de uma singeleza difícil de atingir. De outros, tendi a afastar-me, por injustas e variadas razões: António Lobo Antunes foi encantador, mas deveio, de semana para semana, monotonamente igual a si próprio.

Lia João Pereira Coutinho, cujos textos me entusiasmavam por serem os de um conservador culto e inteligente, com quem me agradava discutir mentalmente e de quem podia discordar para além do território estrito das ideias pré-fabricadas. Ainda o espreito, apesar de um certo snobismo intelectual acabar por se tornar fatigante.

O meu predilecto há-de ser eternamente, nesta fugaz eternidade que corresponde ao espírito da crónica, Miguel Esteves Cardoso. Uma amiga dizia-me, há tempo, que, em certas crónicas, MEC parece estar unicamente a encher papel, sem ter nada para dizer.
Não é "encher papel". É apenas o segredo da leveza. Até o insignificante pode valer umas linhas: passei por aqui quando pensava ou sentia isto. A brevidade tem a sua própria beleza.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

PARIS



Tenho o álbum diante de mim. Na ilustração da capa, um balão expõe a fala de uma certa personagem: «Paris será sempre Paris!», diz a senhora. Em seu redor, vemos uma profusão de gente das mais variadas etnias e culturas: argelinos, negros, provavelmente da Costa do Marfim ou da Somália, asiáticos. Numa primeira leitura, a ironia reflecte a cegueira da mulher, a qual se refere a uma Paris de cuja mudança não se apercebeu. Numa segunda leitura, mais filosófica, não há propriamente ironia: existiria, sim, uma essência parisiense que se mantém, independentemente das transformações da sua população, ou da multiplicidade de linguagens e costumes.

Sou um fanático de Paris. Mesmo de uma vez em que deparei com a cidade negligenciada, como um apartamento que não é limpo nem arrumado há demasiado tempo, com rachas visíveis e uma atmosfera geral de abandono, precisei de poucas horas para reencontrar a respiração íntima da sua personalidade.
Já visitei Paris nas mais diversas situações, das mais diferentes maneiras e sob pretextos inenarráveis. Até com o de me ir documentar para a dissertação que escrevia na altura. Com um companheiro tresloucado de aventuras; com uma companheira perigosa de aventuras; em Lua-de-Mel; com meu irmão; com a mulher de então e meu filho; sozinho. Uma das tristezas que conservo é nunca ter conseguido convencer certa namorada a viajar, comigo, até à Cidade com maiúscula (para evitar o lugar-comum «Cidade-Luz»). Que a encara, infelizmente, como um cliché turístico: a Torre Eiffel, o Moulin Rouge, Montparnasse, ou seja, uma cidade que mais valeria comprar dividida por postais ilustrados. Seria motivo bem fundamentado para uma separação se, de facto, essa mulher não fosse infinitamente mais do que o seu preconceito anti-Paris.

Nem quando visitei Paris sozinho me senti só. Chegava sempre carregado de memórias que me devolviam imediatamente ao específico universo parisiense. O dia em que me furtaram a mochila com todos os meus pertences. O episódio da cama por fazer, no hotel. Comer uma maçaroca assada num fogareiro. Deliciar-me escutando o músico de rua, que arrancava melodia a um serrote, fazendo-o vibrar com um arco. Os passeios pelo Jardin du Luxembourg. A descoberta da FNAC, quando em Portugal se não sabia o que era isso. Ou (acreditem!) a descoberta do MacDonald quando em Portugal se não sabia o que isso era. Mas, mais do que tudo, perder-me pelos alfarrabistas do Quartier Latin, vasculhar impensáveis raridades, admirar os pintores e conversar com eles, em Montparnasse. Inebriar-me. Sentir-me a mim mesmo. Reencontrar-me no que em mim me dá mais prazer.

De cada vez que me preparo para regressar a Paris, prezo tanto o planeamento e a antecipação como a visita em si. Entrar num modo específico, decidir o que levar, reler livros em francês. Conheço grandes cidades do mundo - e, paradoxalmente, nunca fui a umas quantas, que não gostaria de morrer sem espreitar. No entanto, surgindo-me a oportunidade, não é nessas cidades que penso imediatamente. E se aproveitasse agora para..? Não senhor. É em Paris. Discuto comigo próprio. Outra vez? Que tal, agora, estoutra? Que tal, agora, aqueloutra? Não há só Paris no mundo, caramba, José António.
É inútil. Há-de ser Paris, uma vez mais. Tic-tac, tic-tac, o plano entrou em marcha.

      

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O TRABALHO


Todos nós, seres humanos vivendo em sociedade, obrigados a trabalhar para o próprio sustento, aprendemos a sentir o esforço do nosso trabalho como penoso e desgastante, uma forma, que aceitamos (que remédio!), de opressão, um peso que mina e condiciona o sentido da nossa existência e o valor da nossa vida.

É verdade que, não há muitos séculos, o ingresso das mulheres no mundo laboral foi saudado pelo pensamento feminista como um passo para a emancipação. Igualmente, a entrada de um jovem no seu 1° emprego é vista como a garantia da sua independência. Finalmente, sabemos que a pessoa que se reforma está ansiosa por se dedicar a actividades em que se realize — ou seja, em redescobrir o trabalho de um modo que o faça sentir-se vivo e feliz.

Parece um pouco retrógrado sacar, hoje, qualquer referência a Marx. Pensadores do século XXI, imbuídos do espírito científico e de um festival de experiências, não se dignam já falar do velho barbudo, sequer para o denegrir. As contas foram saldadas. A História se encarregou de mostrar em que resulta a aplicação da teoria marxista à prática. Assunto arrumado.

E todavia, as palavras de Marx acerca do trabalho (que já, antes dele, eram as de Hegel) são de uma sagacidade filosófica que o tempo não arruinou. O trabalho preenche-nos. O poder de realização de coisas é o princípio da nossa própria realização, como sujeitos e seres humanos. Sermos capazes de ensinar, de consertar, de pintar ou dançar, ou representar ou cozinhar, de coser ou dirigir, ajardinar, experimentar, narrar, limpar ou tocar um instrumento, constitui, em todas as formas, aquilo sem que a vida seria mais pobre e mais triste.

É, portanto, quando não nos realizamos no trabalho porque este nos nega, deixando-nos com o travo da infelicidade mais do que do bem-estar, quando "não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas se torna fisicamente exaustivo e mentalmente desgastante", não escolhido nem desejado, antes imposto, que ele se vira contra nós, ao invés de nos libertar.

A isto, Hegel, primeiro, Marx e Engels, no século XIX, chamaram alienação. A cisão, de cada um, de si mesmo. Não sermos nem nos reconhecermos no que fazemos. Roubarem-nos de nós a nós mesmos, empurrando-nos para uma rotina absurda.

Ao contrário do que poderíamos pensar, nem sempre a compreensão do que sucede está nas últimas descobertas. Às vezes, basta relermos os pensadores de ontem.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

MAD MEN À PORTUGUESA


Confesso que uma das séries a que me converti recentemente foi Mad Men. Trabalhando em empresas da Madison Avenue, os jovens publicitários dos anos 50 cunharam, para si mesmos, o nome que a série usaria como título.

Aquilo que podemos acompanhar é, entre reflexões existencialistas e relacionamentos dramáticos, o puríssimo movimento da criatividade. No fundo, a publicidade vista como uma forma de arte. Os críticos da sociedade consumista não proliferavam ainda. Tornar os produtos apetecíveis, criar o desejo de os possuir, vendê-los psicologicamente, ainda não parecia uma infâmia, uma futilidade e uma arma ao serviço de um capitalismo sem escrúpulos, impiedoso. Apenas o exercício de jovens talentosos, poetas não do belo, mas do gosto e do apetite: estes homens estudavam o produto e o nicho de potenciais consumidores, e criavam o conceito que fazia crescer água na boca, a frase certeira, a imagem irresistível. Vemo-los pensando, sofrendo, em crise, ou tendo a intuição genial, que deverão, antes de mais, vender aos proprietários da marca, que a eles recorreram. Sem PowerPoint ou imagens digitais, dependendo unicamente da sua retórica e dos seus desenhos, numa sala de reuniões, apresentam a ideia ao cliente, como quem faz magia.

Quem vê um episódio de Mad Men e, depois, começa a prestar atenção à publicidade lusa, sente-se chocado. Oh, bem sei que, dos anos 50/60 ao nosso tempo, muita coisa ocorreu. Oh, bem sei que os EUA são os EUA e a Lusitânia é a Lusitânia. Ainda assim. Quem são, onde se formaram, quem contratou estes gajos? Já ouviram um anúncio radiofónico a um Banco, por exemplo, que não se faz senão através de sistemáticos diálogos entre um homem e uma mulher, sob o signo de jogos de palavras e de equívocos arrepiantemente paupérrimos? Pelo amor de Deus. Os fulanos que os contrataram acharam graça, riram-se? Alguém gritou: Que ideia tão gira? Ou um anúncio a um stand, ou a uma marca de automóveis? Ou, no cinema, aos benefícios da reciclagem? Ou a um refrigerante? Já alguém viu o mundo pretensamente (e pretensiosamente) surrealista da Somersby? (Dir-me-ão que talvez não seja publicidade portuguesa. Pois aposto que o é).

Temos jovens de talento em quase todas as áreas. Hoje. Na Literatura, na Banda Desenhada, no Humor, na Música, no Cinema, no Desporto, até na Imprensa. Por acaso, o produto televisivo nacional é pobrezito — mas, para quem aprecia o género "telenovela", o facto é que tem sido premiado internacionalmente.

Portugal começa a mostrar-se e a espantar. Considero este Renascimento uma das coisas melhores da participação no nosso tempo e neste país. Mas, por favor, não o publicitem.

Esqueçam a ideia. Não com os publicitários portugueses que nos cercam, gente que, no meio do renascimento do país, nunca renasceu, e é, até, infinitamente menos interessante do que os seus bisavós. Mesmo a publicidade portuguesa do passado vale mais: "Uma chama viva onde quer que viva", "Es-es-tá a go-go-zar co-co-mi-migo?" "Não, estou a go-go-go-zar co-com ele", etc. Estes, em contrapartida, já nasceram mortos: se os chamássemos para falar dos bons tempos lusos, arriscávamo-nos a estragar o brilho de um país a ressuscitar.

HÁ PRÓ MENINO E PRÁ MENINA


Relativamente ao tema dos cadernos de actividades da Porto Editora, um azul, ao que parece mais complexo, para os rapazes, e um cor-de-rosa, dizia-se que mais básico, para as raparigas, passará a existir um A.-RAP e um D.-RAP: Antes de Ricardo Araújo Pereira e Depois de Ricardo Araújo Pereira. Com toda a justiça.

Por mim, arrependo-me amargamente de não ter seguido o meu instinto e publicado de imediato, contracorrente, a crónica que já tinha preparado. Reagia ao vórtice de comentários na internet, muitos deles redigidos por amigas minhas. Pedia-se a cabeça da Porto Editora. Acusavam-na de discriminação. Recordavam que não estávamos na Idade Média. Apelavam para o boicote aos seus livros.

Coros indignados sublinhavam o facto de haver, no nosso país, mais doutoradas do que doutorados. Subia-se de tom. Era uma vaga imparável. Na minha impublicada crónica, da qual repesco, de memória, umas quantas ideias, enunciava a evidência de que sempre se editaram livros destinados ao gosto das raparigas, e outros, ao dos rapazes. Como pai de um casal, assisti à lenta e segura constituição das referências do meu filho, o primogénito; inicialmente, nada o sugeria, até porque, durante muito tempo, ele se identificava com as personagens femininas dos filmes da Disney. Propunha que, por exemplo, em dada brincadeira, fizesse de conta que era o Mowgli, enquanto eu representava o Baloo, e recusava-se: preferia ser a namorada do Mowgli.
Tentei que treinasse futebol num clube, mas foi sempre um sacrifício. Confesso que se tratou de uma fase que me confundiu, mas a que me ajustei sem ruído.
Em contrapartida, a minha filha apreciava o futebol. Nunca se interessou por bonecas, nem carrinhos de bebé, muito menos por apetrechos para o lar.
E no entanto, sem programação (pelo menos consciente) da minha parte, os estereótipos acabaram por se definir na sua vida. Por causa dos amigos e das amigas, da publicidade, de séries de estímulos subliminares? Sem dúvida. Ou também pelo curso intrínseco do seu desenvolvimento? Aí está. A experiência mostrou-me como se formam, naturalmente e desde cedo, interesses e gostos diferenciados, que seria ridículo atribuir exclusivamente a estereótipos e à pressão do meio. Compreendo até que me digam: A origem é indiferente — intrínseca ou cultural, essa padronização redutora, na prática, dos papéis feminino e masculino, deve ser combatida. Mas combater não significa proibir uma realidade complexa.

Meu filho, quando começou a ler, pediu-me que lhe comprasse um Livro dos Rapazes (azul e tudo), o qual, como o manual do escoteiro-mirim, ensinava a montar uma tenda ou a comunicar em código. (Mais tarde, quando o descobriu, a miúda leu o livro, da primeira à última página, deliciada e sem quaisquer complexos. Actualmente, porém, quando a levo à Biblioteca, escolhe sempre livros para raparigas: os que lhe explicam tudo, como ela orgulhosamente diz, sobre a sua pré-adolescência. A preparam para o período, lhe falam das transformações do corpo ou mostram como se maquilhar).

Por péssima que fosse a ideia da editora, não vejo nela senão o desejo rudimentar de lucrar com o facto de os meninos serem fãs de carrinhos e futebolistas e, as meninas, de princesas e penteados. Preconceito teria sido eu não comprar a meu filho, se ele pedisse, o caderno para as raparigas. Em suma, pode ter sido um tiro no pé da Porto Editora. Não vale a pena passar-se à fase do linchamento.

Não desisti da crónica por falta de coragem. Apenas porque me preocupou a insistência dos media em que os exercícios para elas eram mais básicos do que os do caderno para meninos. Pensei: A ser assim, então, de facto, convém ir com cuidado. Ricardo Araújo Pereira, contudo, comprou-os, comparou-os. Nem sequer é sistemática e significativamente verdadeiro que haja uma diferença de grau de dificuldade: aleatoriamente, encontram-se exercícios mais simples ou menos simples num ou noutro.

Não fui a tempo. Agora é inútil: a genial intuição de RAP esvaziou o tema. Acabou a festa. Arrumem as bandeiras e os very-light. A multidão em fúria pode começar a dispersar.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

TRAZ PRÁ A FRENTE



A televisão portuguesa data dos anos 50 ou 60. Como é fácil de ver, a sua história acompanha, reflecte e, em alguma medida, marca o outrora do país. Se nos lembrarmos de que uma parte ocorreu sob o Estado Novo, em tempos de miséria e pouca diversidade cultural, anteriores à internet e aos telemóveis que constituem o único habitat das últimas gerações, apercebemo-nos da sua importância então, e intuímos a importância que poderá ter, ainda, como meio de nos levar a revisitar o seu e o nosso passado.

Hoje que Portugal parece renascer a partir de improváveis vitórias - o Euro 2016, a Eurovisão, as medalhas de ouro dos nossos atletas -, os jovens contemporâneos vivem sob uma educação e uma experiência de sucesso colectivo e, portanto, têm expectativas, fé e modelos que os tornam radicalmente diferentes dos jovens dos anos 60. Lembram-se? No marasmo de um país isolado no canto da Europa, como um puto mandado virar-se, de castigo, para a parede (salvo que, em vez da parede, tínhamos o mar, que é tão diferente) habituáramo-nos a pertencer a uma pátria perdedora. Parava-se para assistir à Eurovisão, mas já sabíamos que não tínhamos a menor hipótese. Depois, evidentemente, dizia-se mal dos outros países, que nos invejavam e desprezavam. No futebol havia o Eusébio, mas, internacionalmente, não íamos longe. Amália encantava, mas, de facto, parecia pouco como símbolo de um país inteiro.

O programa Traz prá Frente, do Canal Memória, reúne, em torno de uma mesa, diversas gerações de bons conversadores. O extraordinário Júlio Isidro, que experimentou, inventou, propôs, renovou e, sobretudo, descobriu, desassossegado e inesgotável, Nuno Markl e Fernando Alvim, radialistas que, de algum modo, equivalem, hoje, com seus múltiplos e exuberantes projectos, àquilo que Isidro terá sido em outra altura (também por lá andou Àlvaro Costa, mas esse constituiu, quanto a mim, um erro de casting), moderados por Inês Lopes Gonçalves, uma jovem adequadíssima para o papel, genuinamente curiosa, interessada, pertinente, e um convidado rotativo, transformam-se nos eufóricos porteiros de viagens pela memória que valem a pena. A alguns de nós, recordam o que havia - e havia, com menos meios, coisas verdadeiramente magníficas - e, aos mais novos, possibilitarão conhecimento e comparação.

Trata-se, paradoxalmente, de um programa jovem. O seu modo de encarar o passado e as suas referências televisivas nada tem de bafiento ou saudosista. É sempre bem humorado, frequentemente reflexivo. Não existiam Sic ou Tvi, já para não falar das Fox e das AXN. Não havia Guerra dos Tronos, mas havia Bonanza e O Santo. E, ainda antes do 25 de Abril, Zip-zip. É uma terna e prolífica ligação às raízes.        

domingo, 27 de agosto de 2017

TEORIA SALUTAR DA CONSPIRAÇÃO


O problema com o conhecimento do mundo a partir dos media é que nunca podemos analisar o próprio foco. Mostram-nos uma narrativa acerca dos factos, mas quem nos mostra uma narrativa acerca da narrativa? Quem identifica metodicamente o preconceito, a ideologia, o interesse que, ocultos sob a pretensa objectividade, condicionam a forma de ver (e contar) o acontecimento?

Detenhamo-nos um instante naquela revista que, se bem me lembro, usa como frase a promessa de lhe dar "uma visão". O slogan devia pôr-nos de sobreaviso. Em primeiro lugar, porque desejaríamos que alguém visse (isto é: pensasse) em vez de nós? Em segundo lugar, qual o preço dessa dádiva, num mundo em que, é claro, tudo tem um preço?

A Visão, que já não é o que era e, neste momento, não vale senão pela crónica humorística de Ricardo Araújo Pereira (uma vez que até o Lobo Antunes caiu e se fixou numa rotineira ruminação sobre os seus fantasmas) tem dedicado uma série de artigos à alimentação. Em concreto, trata-se de mostrar que as alternativas, quer sigamos um projecto de saúde e bem-estar, quer a recusa ética de consumir carne, têm trágicas consequências. Seria, evidentemente, excelente trabalho jornalístico. Denunciar as ilusões. Mostrar que os paradisíacos caminhos das novas utopias ocultam males desconhecidos, tráficos impensáveis, desequilíbrios ecológicos perigosíssimos. A questão é que tudo tem de ser analisado à potência. Que narrativa subjaz a esta narrativa? Que interesses movem o corajoso desmascaramento de interesses?

O leitor deve proceder a uma autêntica revolução copernicana. Não perder de vista que uma visão geocentrista verá e explicará sempre os movimentos dos astros diferentemente de uma visão heliocentrista. Nem perder de vista que, mais do que o jornalista investigar a partir do seu próprio parti-pris, existem indústrias ligadas à alimentação dita normal que tudo fariam - e fazem - para que olhemos para os produtos biológicos e sem carne como para verdadeiros pesadelos.

Nesta crónica, que parece talvez reflectir a mais primitiva teoria da conspiração, não há senão um convite. Não aceitem que vos ofereçam uma visão. Desconfiem. Investiguem. Comparem. Pensem à potência. Leiam as leituras de leituras de leituras. Se não fosse vegetariano, dir-vos-ia: não comprem gato por lebre.